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Não à auto incriminação

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22.08.2010 Opinião
A expressão latina nemo tenetur se detegere significa, literalmente, que ninguém é obrigado a se descobrir, ou seja, qualquer pessoa acusada da prática de um ilícito penal não tem o dever de se auto-incriminar, de produzir prova em seu desfavor, tendo como sua manifestação mais tradicional o direito ao silêncio. Tanto o direito ao silêncio quanto o direito à não auto-incriminação, além de haverem sido consagrados em documentos internacionais de proteção aos direitos do homem (Convenção Americana de Direitos Humanos – também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica – e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos), têm sido, de forma expressa ou implicitamente, adotados pela maioria das legislações constitucionais e infraconstitucionais nos Estados Democráticos de Direito.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), embora faça referências à presunção de inocência e à não-utilização da tortura, deixou de mencionar o princípio nemo tenetur se detegere, consagrando-o implicitamente. O princípio nemo tenetur se detegere está presente, portanto, explicitamente, nas Constituições do Brasil, da Espanha, da Argentina e dos Estados Unidos da América do Norte e, implicitamente, nas Constituições da Alemanha, Portugal e Itália.
No campo infra-constitucional de muitos países, como Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, Bélgica, Noruega e Argentina, por exemplo, pode-se observar diversos dispositivos mitigando ou restringindo a incidência do referido princípio. No que diz respeito ao Brasil, Marcelo Schirmer Albuquerque esclarece que tanto a doutrina quanto a jurisprudência brasileiras “não conseguem (re)visitar velhas certezas que, entretanto, jamais restaram cientificamente justificadas, seja histórica, seja teleologicamente. Assim agindo, dão ao nemo tenetur se detegere uma conotação de verdadeira imunidade em face da atividade probatória, que não encontra respaldo nos documentos internacionais sobre direitos humanos, que se limitam a afirmar que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, a afiançar a toda pessoa acusada um “julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” ou, no máximo, a reconhecer seu direito “de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”. Prosseguindo, assevera Schirmer, que “em países de reconhecida tradição no âmbito dos direitos humanos e em outros de também indiscutível desenvolvimento nas dogmáticas Penal e Processual Penal, o nemo tenetur se detegere quase nunca vai além da prerrogativa de se calar em interrogatório ou de se recusar a depor”.
Assim sendo, a legislação brasileira, que não tem a tradição de admitir, mesmo por meio de ordem judicial, a condução coercitiva do acusado da prática de crime à submissão de exame laboratorial – intervenções corporais – para a extração de material à comprovação de sua responsabilidade penal em casos cujos indícios se lhe apontam como autor do respectivo delito, necessita avançar, sem retirar do imputado os direitos à ampla defesa e ao contraditório, respeitando-se, no mais, seus direitos fundamentais. Num Estado Democrátido de Direito, no qual não somente as decisões são democráticas em sua substância, mas produto de processos igualmente democráticos, não há muito o que se temer quando da relativização do princípio neno tenetur se detegere. É que a não absolutização de direitos e garantias fundamentais não representa nenhuma novidade, seja na doutrina, seja na jurisprudência constitucional.
MARCUS RENAN PALÁCIO DE M.C.DOS SANTOS
promotor de Justiça em Fortaleza e mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa