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Crianças também superam desafios

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12.10.2010 cidade
Lorena Alcântara teve leucemia, mas conseguiu enfrentar a dificuldade com o apoio dos amigos e encarando a doença de maneira positiva, como mais uma etapa da vida
Ex-meninos em situação de rua, hoje, têm uma vida melhor, com muitos sonhos. Escola, acolhimento, alimento e disciplina já lhes foram garantidos. Esperanças estão renovadas
NATINHO RODRIGUES
Estudar é um direito da criança
NATINHO RODRIGUES
12/10/2010
Experiências negativas mobilizam recursos psíquicos que podem levar a desenvolvimentos emocionais
Tão pequenos e já com responsabilidades de gente grande. Muitas crianças têm uma carga pesada para enfrentar desde cedo, mesmo sem maturidade e preparo suficientes. É assim a vida de meninos e meninas que encontram pela frente abandono, vício das drogas, maus-tratos, violência psicológica, trabalho, doenças e falta de creches e escolas. Entretanto, algumas delas encontram força e acabam superando os muitos problemas. Na data em que se comemora o Dia da Criança, cabe lembrar que responsabilidades não tiram a essência infantil, mas podem resultar em amadurecimento precoce.
De acordo com a psicóloga do Instituto do Câncer do Ceará (ICC), Juliana Burlamaqui, experiências como essas mobilizam recursos psíquicos que podem levar a desenvolvimentos emocionais. No entanto, há casos em que o desenvolvimento se estagna. “Tudo depende da situação e da criança”. Juliana lembra, ainda, que podem existir exemplos nos quais os resultados do enfrentamento do problema são traumas. “Isso depende do suporte da família, da história de vida da criança e de como ela assimila o momento”, salienta. O impacto é no desenvolvimento psíquico-afetivo, como diz a especialista.
Para a psicóloga Heliane Passos, os desafios são a maneira mais eficaz de adquirir atitudes de enfrentamento. Mas, se a criança é vitimizada terá mais dificuldade de encarar os problemas. Se recebe suporte fica bem mais fácil.
Os fatores externo (ambiente) e interno (personalidade e temperamento) interferem”. Segundo ela, é importante salientar que, mesmo em uma situação que, a priori, é negativa, é preciso não transmitir negatividade. Um dos problemas que costuma acometer crianças é o abandono, o que acaba obrigando-as a viver nas ruas. Esse tipo de situação atinge um número muito significativo de menores na Capital cearense.
T.P., de 14 anos, era menino em situação de rua. Ele foi abandonado ainda bebê pelos pais biológicos, que eram usuários de drogas. Apesar de ter sido acolhido por outra família, o garoto não parou de sofrer, já que os pais adotivos usavam da violência e o deixavam de castigo, sem comer e beber. Por causa dos maus-tratos, T.P. fugiu, passou a viver nas ruas e, assim, a roubar e usar drogas. Hoje, ele está no abrigo O Pequeno Nazareno. “Gosto daqui, minha vida melhorou muito. Tenho tudo: escola, lazer, comida, amigos”.
Manifestações
Muitas vezes, a origem dos problemas está na família ou na falta dela. A pediatra Ângela Mapurunga alerta que a ausência dos pais tem efeitos físicos nas crianças, como depressão, obesidade e gastrite. Fora isso, elas podem ter manifestações psicossomáticas, como a ansiedade e a agressividade, além da dificuldade na escola, sonolência e autoestima baixa. “Tudo depende da reação da criança”.
Ângela explica que algumas reações são, na realidade, uma forma de chamar a atenção da família. Para a pediatra, o grande segredo está na comunicação. “É muito importante os pais ouvirem seus filhos”.
O trabalho também é uma responsabilidade que muitas crianças têm de assumir. É o caso de G.C.L, de 14 anos. O menino morava com os pais, que ficaram desempregados. No momento de dificuldade, eles o colocaram para pedir dinheiro no sinal de trânsito. O garoto tinha medo de voltar para casa sem nada. Assim, ele passou a viver nas ruas e a se envolver em assaltos e consumir drogas. Hoje, ele está no abrigo O Pequeno Nazareno e já se considera recuperado. “Quero estudar e trabalhar. Sou um cidadão normal. O que mais sonho é sair daqui e ter minha família de volta”, diz.
Segundo o coordenador geral do abrigo, Bernd Josef Rosemeyer, eles atingiram uma perspectiva de vida que nunca sonharam que teriam. “E tudo isso foi conseguido com vontade própria”, frisa. Doenças agressivas, como o câncer, também são vicissitudes que acometem crianças. Lorena Lacerda Alcântara, 13, tinha leucemia mieloide aguda. Os médicos já disseram que a doença está sob controle. Para a menina, foi uma luta vencida, após mais de dois anos de tratamento à base de quimioterapia e radioterapia e que a fizeram passar por momentos difíceis, como quando teve de ficar 12 dias no hospital sem comer ou beber. Porém, a menina Lorena não se faz de vítima.
“Acho que Deus queria que ficasse perto dele. Consegui superar com o apoio dos amigos. Qualquer pessoa pode vencer as adversidades. Tudo é uma etapa da vida que um dia passa”, completa, esperançosa.
LINA MOSCOSO
REPÓRTER
LEIS GARANTEM
É possível evitar violações
Muitos problemas que acometem crianças poderiam ser evitados. Aqueles causados por violações de direitos são os exemplos mais simples de serem resolvidos, caso houvesse uma seriedade maior por parte do poder público no cumprimento de leis. A legislação específica para crianças e adolescentes, presente na Constituição Federal Brasileira, ainda não está aplicada, na prática, em toda a sua plenitude.
No caso de violações, as restrições são bem maiores, como ressalta a psicóloga Heliane Passos. “Nessa situação, o meio, que é um dos fatores que interferem no enfrentamento do problema, faz a diferença de maneira negativa ou positiva”.
Contudo, como ressalta o presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza (Comdica), Thiago de Holanda, a partir de 2005, avanços começaram a ser sentidos na Capital. “A política pública municipal veio trabalhando, nos últimos seis anos, a municipalização do serviço de apoio à criança e ao adolescente com a retaguarda do Estado do Ceará e do Governo Federal”, destaca.
Como informa, a Prefeitura garante atendimento psicossocial, abrigos, 70 educadores sociais para abordagem nas ruas, escolas de ensino fundamental e dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps) infantis, que visam à saúde. “Procuramos trabalhar os direitos humanos na perspectiva universal”.
Defesa
Todavia, desafios ainda precisam ser vencidos. O principal deles é o fortalecimento dos conselhos tutelares como instituições legítimas de defesa. Como destaca Thiago de Holanda, é preciso que haja esforços por parte de todos (sociedade, Estado e família) para vencer a luta contra a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes, já que se trata de uma responsabilidade dividida.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
O “brincar” demarca a fase da infância
Sabrina Matos
Psicóloga e professora da Unifor
Antes de mais nada, é preciso salientar que o conceito de infância não é sinônimo de criança. Nem toda criança (um dado cronológico) tem infância (um dado sociocultural). O conceito de infância foi inventado para que as crianças pudessem usufruir desse período da vida fazendo aquilo que demarca essa fase da vida, ou seja, brincar.
Crianças são, atualmente, tão atarefadas que nem sobra tempo para brincar, mas também existem aquelas que precisam substituir a brincadeira pelo trabalho. Estudiosos da infância são unânimes em afirmar que o trabalho nesse período da vida vai trazer consequências negativas no sentido de a criança não vivenciar o que, fundamentalmente, caracteriza a infância, que é a brincadeira.
Muitas das crianças que têm de trabalhar e/ou ficar nas ruas muito provavelmente não foram programadas, planejadas, desejadas. Trata-se de uma perspectiva desestruturante. Gradientes de desenvolvimento não serão atingidos se a criança não tiver o amparo familiar, o afeto, a presença física e a escuta. Amadurecimento precoce é sinônimo de “adultização”. A existência da criança somente passa a ser importante quando ela consegue fazer as mesmas atividades dos adultos.
Não vivenciar sofrimentos: essa não é uma possibilidade do humano. Somos inscritos na ordem da falta, somos sujeitos da incompletude. Não dá para escapar. Crianças vão passar por dificuldades durante a vida e isso é inevitável.