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Dez anos depois, audiências de custódia seguem ampliando garantia de direitos

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Por Carolina do Vale e Isabela Ricco 

 

O debate sobre o futuro da audiência de custódia começou a ganhar novos contornos em 12 de fevereiro de 2025, quando, na sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília-DF, foi lançado o programa Pena Justa, anunciado como uma “virada de chave” no combate às violações de direitos humanos no sistema prisional brasileiro.

O anúncio foi feito pouco mais de um ano após a decisão histórica do Plenário do STF, que, em 4 de outubro de 2023, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, reconheceu, de forma unânime, a existência de um “Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema carcerário do país.

Nesse contexto, o Pena Justa surge como uma resposta articulada entre Judiciário, Executivo, demais órgãos do sistema de Justiça e sociedade civil, com mais de 300 metas a serem implementadas nos próximos três anos, com o objetivo de transformar o cenário prisional brasileiro.

Um dos eixos do programa – o Controle da Entrada e das Vagas do Sistema Prisional – coloca o fortalecimento da audiência de custódia no centro das estratégias. O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ), desembargador Luís Geraldo Lanfredi, informa que o plano busca padronizar o modelo nacional de audiências de custódia.

Além disso, prevê a adoção de parâmetros para a tomada de decisão em casos envolvendo crimes específicos – como tráfico de drogas – e grupos vulneráveis — como mulheres, migrantes, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQIA+ e com questões de saúde mental.

Cada estado elaborou seu próprio plano. No Ceará, o documento foi lançado no último dia 26 de setembro e destaca a expansão e o aperfeiçoamento das audiências de custódia como estratégia essencial para um sistema penal mais justo e eficiente.

O desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira, supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF) no âmbito do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), aponta que o diagnóstico feito no Estado mostrou, em relação às audiências de custódia, “a necessidade de melhorias estruturais, informações mais qualificadas na fase de pré-custódia, equipes multiprofissionais de atendimento e fortalecimento das alternativas penais”.

 

Perna com tornozeleira eletrônica
O aperfeiçoamento das audiências de custódia é estratégia essencial para um sistema penal mais justo

 

 

O modelo adotado para a expansão das audiências de custódia no Ceará, com a implantação de Núcleos Regionais de Custódia e das Garantias, é apontado como referência no Plano Pena Justa. Nessas unidades, o juiz de garantias atua não apenas nas audiências de custódia, mas em toda a fase pré-processual, para garantir o controle da legalidade e os direitos individuais das pessoas investigadas.

Como proposta de avanço, o Plano estadual prevê a administração conjunta desses núcleos e a ampliação do modelo para Fortaleza, com a transformação da unidade da Capital em Vara de Custódia e das Garantias.

 

 

O programa Pena Justa busca fortalecer o princípio de presunção de inocência, reafirmando que a liberdade deve ser a regra e a prisão, exceção. O documento mostra que o crescimento da população carcerária, desde os anos 1980, não resultou em maior segurança pública, evidenciando os limites do modelo punitivista.

Incentiva também a articulação entre audiências de custódia e Núcleos de Justiça Restaurativa, priorizando um modelo de atuação judicial que busca não apenas a punição, mas a reparação dos danos causados e a restauração dos laços sociais.

Esse pensamento é o que norteia o projeto Custódia Restaurativa, desenvolvido pelo TJCE. A juíza Flávia Setúbal, titular da Vara de Custódia de Fortaleza e, atualmente, auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça do Ceará, explica que é uma iniciativa inovadora, voltada para pessoas beneficiadas com a liberdade durante a audiência de custódia. Os encontros promovem debates, reflexões e acolhimentos. “Utilizando a metodologia dos círculos de construção de paz, o projeto visa desenvolver nos participantes a compreensão dos atos cometidos e o senso de responsabilidade pelos danos causados”, resume.

 

O Pena Justa também estabelece ações de enfrentamento ao racismo institucional e à seletividade penal, incentivando formações para operadores da Justiça e da Segurança Pública que atuam nas audiências de custódia, abordando as desigualdades raciais e interseccionais — envolvendo gênero, sexualidade, idade, deficiência e pertencimento a povos e comunidades tradicionais.

O Plano ainda prevê que pessoas presas que apresentem problemas relacionados ao uso abusivo de álcool e drogas devem ser encaminhadas a serviços de saúde e assistência social, evitando medidas punitivas inadequadas.

 

Policial segura algema aberta nas mãos
O programa Pena Justa busca fortalecer o princípio de presunção de inocência

 

 

O caminho que se projeta para a audiência de custódia é de maior articulação com políticas públicas e redes de proteção social. Como afirma o juiz Edilberto Lima, que também atua na Vara de Custódia de Fortaleza, os direitos fundamentais evoluem junto com a sociedade. E um exemplo disso é como esse instrumento tem ampliado sua função: se antes bastava apresentar a pessoa presa à autoridade judicial, hoje o ato também busca assegurar condições mínimas de dignidade, já que muitos chegam em situações de extrema vulnerabilidade.

“À medida que a sociedade vai evoluindo, há uma expectativa legítima de maior cobertura de direitos fundamentais. Hoje, já não é suficiente apenas verificar a legalidade da prisão. É necessário garantir dignidade à pessoa apresentada, seja em termos de alimentação, vestimenta ou saúde”, roconhece o magistrado.

 

 

Outro papel central das audiências de custódia é o combate à violência policial, como enfatiza o juiz Marcos Aurélio Marques Nogueira, um dos magistrados que integra a equipe da Vara de Custódia de Fortaleza. Segundo ele, o instituto funciona como barreira preventiva contra práticas de tortura e abuso de autoridade.

“A finalidade maior da audiência de custódia é verificar se houve alguma ilegalidade ou violação a direitos humanos, por abuso da autoridade policial, por exemplo, em face de uma realidade histórica da nossa sociedade, de casos de tortura e de agressões que muitas vezes aconteciam na prisão em flagrante. A audiência de custódia veio para alterar essa cultura e garantir que a pessoa presa tenha respeitado o direito a sua integridade física”, lembra.

Quando há indícios de violência, os casos são encaminhados a órgãos de controle externo da atividade policial, como a Controladoria-Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) e o Ministério Público.

No âmbito do Judiciário estadual, a Resolução nº 10/2023 do TJCE regulamenta o fluxo administrativo para recebimento, apuração e monitoramento de denúncias de tortura, prevendo acolhimento às vítimas, proteção a testemunhas e encaminhamentos para responsabilização administrativa e criminal.

 

 

Ao mesmo tempo que a tecnologia pode ser uma grande aliada das audiências de custódia, há limites para esse uso. A regra é que ela não substitua — salvo em situações excepcionais — a realização presencial, já que o contato direto entre a pessoa presa e a autoridade judicial é essencial para identificar as circunstâncias da prisão e definir o melhor encaminhamento.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prevê que apenas em casos de calamidade pública, crise sanitária ou impossibilidade de apresentação presencial da pessoa presa, a audiência de custódia poderá ocorrer de forma virtual, dentro do prazo legal.

Apesar dessas restrições, as novas tecnologias, como a Inteligência Artificial (IA), vêm se mostrando recursos capazes de aprimorar o andamento das audiências e a garantia de direitos. No Ceará, uma iniciativa inovadora já está em fase de testes.

A Resolução nº 213/2015 do CNJ prevê, em seu Protocolo II, que a pessoa custodiada estrangeira deve ter assegurada a assistência de um intérprete. O objetivo é garantir o pleno entendimento dos termos da acusação, bem como o exercício do direito de expor sua versão dos fatos, a fim de evitar nulidades por cerceamento de defesa.

O prazo para realização da audiência pode, no entanto, correr mais rápido do que a designação e chegada de um perito tradutor oficial. É na busca por uma solução eficaz para esses casos que o TJCE vem elaborando um incremento ao sistema de Transcrição Automática de Linguagem por Inteligência Artificial (Talia).

Solução em Inteligência Artificial (IA) já em uso pelas unidades administrativas e judiciais do Tribunal, a ferramenta Talia realiza a transcrição automática de áudios e vídeos de audiências e reuniões virtuais, transformando-os em arquivos de texto, e começa agora a ensaiar um novo papel: a tradução.

Ainda em fase inicial de desenvolvimento, o recurso buscará auxiliar a passagem de estrangeiros não-falantes da língua portuguesa pela custódia, ao realizar a tradução instantânea de todos os atos da audiência no idioma nativo do custodiado. A ferramenta permite identificar e separar os diferentes falantes, garantindo maior celeridade ao interrogatório e resguardando os direitos da pessoa detida.

Por meio de simulações em situação próxima à realidade, o artifício foi testado pela primeira vez no 4° Núcleo Regional de Custódia de Caucaia. O juiz titular do Núcleo, David Ribeiro de Souza Belém, disse que a demanda surgiu em razão da proximidade da comarca ao Porto do Pecém, e o novo instrumento poderá “mudar a realidade desse sistema para pessoas que não falam a nossa língua”.

“A partir do porto (Pecém), há a chegada de navios do mundo todo, com várias bandeiras, e quando eles estão atracados, os marinheiros vão à terra, podendo ocorrer alguma ocorrência policial. Já recebemos egípcios, árabes, italianos e franceses. Por isso, precisamos dessa tradução que acompanhe a dinamicidade da audiência de custódia”, explica.

Desenvolvida especialmente para o Judiciário, a ferramenta buscará acompanhar os diálogos com maior precisão. “Com a Talia, há a formalização desta tradução. Usar o Google Tradutor ou outra ferramenta semelhante pode garantir praticidade, mas com a IA, além de permitir que as falas fiquem gravadas na língua do custodiado e convertidas para o português, irá gerar um relatório da forma como foi dito e perguntado. Tudo isso será documentado e ficará dentro do processo, uma realidade inexistente com o uso de um tradutor de celular”, detalhou o magistrado.

 

Mãos digitando em um teclado de computador diante de dois monitores
As novas tecnologias vêm se mostrando recursos capazes de aprimorar o andamento das audiências

 

 

Projetar o futuro das audiências de custódia envolve, como afirmam as fontes ouvidas nesta matéria, ampliar sua estrutura, favorecer a integração com políticas públicas para combater discriminações e vulnerabilidades, capacitar os profissionais envolvidos e investir em inovação.

Além disso, requer a defesa de sua importância e de seu papel como instrumento de efetivação do Estado Democrático de Direito, como enfatiza a juíza Adriana da Cruz Dantas, titular da unidade em Fortaleza: “Seguiremos comprometidos com o aprimoramento contínuo do nosso trabalho, com a valorização das garantias processuais e com a construção de um Sistema de Justiça mais justo, inclusivo e humanizado, consciente de que o fortalecimento das audiências de custódia é um dos caminhos para a concretização dos direitos humanos no Brasil”.

Para o coordenador do DMF/CNJ, Luís Geraldo Lanfredi, assegurar o futuro das audiências de custódia significa consolidar o compromisso com o devido processo legal, o contraditório e a dignidade humana. “Ao incorporar práticas de escuta qualificada e análise contextual das circunstâncias da prisão, a custódia aponta para um modelo de Justiça mais comprometido com o princípio da legalidade”, conclui.

 

 

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