“Na rua, só temos o céu por teto e o asfalto como chão. Nosso colchão é o papelão, e nossos direitos, muitas vezes, são apenas lembranças distantes.”A fala de Arlindo Ferreira, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua no Ceará, carrega o peso de uma realidade invisibilizada. Mas também anuncia uma nova esperança. Nesta quarta-feira (25/06), o Ceará escreveu um novo capítulo na história da Justiça brasileira: foi lançado o Comitê Local PopRuaJud – Ceará, o primeiro do país com atuação conjunta de quatro ramos do Poder Judiciário.

A iniciativa une o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), o Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (TRT7), o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) e o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE), firmando um compromisso institucional inédito e coletivo para garantir cidadania, dignidade e acesso efetivo à Justiça para pessoas em situação de rua.

“A missão do Judiciário é garantir direitos. E, entre todos os vulneráveis a quem devemos servir, talvez a população em situação de rua seja a mais desprovida dos mínimos requisitos de cidadania. Falar em direito, para quem não tem sequer habitação, saúde ou segurança, já parte de um lugar de muita desigualdade”, destacou o presidente do TJCE, desembargador Heráclito Vieira de Sousa Neto, reforçando o papel da Justiça em enfrentar as causas estruturais da exclusão.

O Comitê é o começo de um compromisso mais profundo, que reconhece a urgência de políticas efetivas, interinstitucionais e humanizadas. Para além da formalidade dos tribunais, o Comitê PopRuaJud nasce com alma. É, nas palavras da desembargadora presidente do TRT da 7ª Região, Fernanda Maria Uchôa, um espaço de escuta ativa, diálogo constante e ação integrada. “É um instrumento de respeito à dignidade humana, uma ponte entre os que muitas vezes são esquecidos e os que têm a missão de assegurar o direito de todos. Estamos dando início a um novo tempo no Judiciário”, afirmou, com emoção.

Essa atuação coordenada representa o fim das ações isoladas. Como ressaltou a presidente do TRE-CE, desembargadora Maria Iraneide Moura, a criação do Comitê potencializa o alcance e a efetividade de cada gesto. “Antes fazíamos ações separadas. Agora, de mãos dadas, podemos dar visibilidade a quem tem sido tratado como invisível. Só o TRE já resgatou a cidadania de mais de 500 pessoas com ações de documentação. Imagine o que faremos juntos.”

 

 

O desembargador da Justiça do Trabalho José Antônio Parente, coordenador do PopRuaJud, reforçou o caráter pioneiro do Comitê e chamou atenção para a responsabilidade. “É um ativismo judicial do diálogo. Temos a vocação para ajudar, e agora estamos institucionalizando isso. A obra é grande, mas vamos trabalhar com sangue nos olhos para levar adiante.”

A realidade vivida por milhares de pessoas nas ruas do Ceará exige urgência e ação concreta. Só em Fortaleza, o número de pessoas em situação de rua passou de 2.600 para mais de 10.600 em dois anos, segundo o Movimento Nacional. “Vivemos sob a chuva, sem banheiro, sem acesso ao mínimo. Somos os ‘sem-sem’: sem direitos, sem esperança, sem nada”, disse Arlindo, que representa com coragem a luta dessa população.

SAIBA MAIS

O Comitê Local PopRuaJud – Ceará será composto por representantes do Judiciário, do Ministério Público, das Defensorias, da OAB, de instituições sociais, da academia e da própria população de rua. A coordenação será exercida de forma rotativa entre os tribunais a cada dois anos.

Criado em conformidade com as Resoluções nº 425/2021 e nº 605/2024 do Conselho Nacional de Justiça, o Comitê vai promover políticas públicas judiciais, articular redes de proteção, realizar mutirões de cidadania e contribuir com dados para os índices nacionais do CNJ. Neste novo ciclo, a Justiça do Ceará reafirma seu compromisso não apenas com as sentenças, mas com a escuta, o acolhimento e a ação concreta.

AÇÕES JÁ VINHAM SENDO REALIZADAS

Antes mesmo da criação do Comitê Local PopRuaJud – Ceará, o Poder Judiciário cearense já realizava ações voltadas à população em situação de rua. Um exemplo marcante aconteceu no dia 27 de outubro de 2023, quando o Tribunal de Justiça do Ceará promoveu, na Praça da Estação de Maracanaú, a primeira ação externa voltada para pessoas em vulnerabilidade social, por meio do Comitê Multissetorial para Promoção de Políticas Públicas Judiciais de Atenção às Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades, à época presidido pela desembargadora Maria Vilauba Fausto Lopes.

Durante a iniciativa, foram oferecidos serviços como emissão de senhas, orientações processuais, solicitação de certidões cíveis e criminais, além de atendimentos da Defensoria Pública, OAB e instituições parceiras, com ações nas áreas de saúde, assistência jurídica e documentação básica. O projeto “Caminho da Visibilidade”, idealizado pela juíza Sônia Abreu, também esteve presente na ação, emitindo certidões de nascimento e casamento para pessoas em situação de vulnerabilidade.