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90% do registro no Juizado são devido às drogas

Ouvir: 90% do registro no Juizado são devido às drogas

07.09.2009 Ciade
Atividades como futebol, música e palestras ocupam o tempo dos meninos e ajudam a evitar o retorno deles ao crime
As ocorrências envolvendo adolescentes só crescem, assim como o envolvimento dos jovens com o crack
Um dos maiores perigos do vício do crack que se alastra por Fortaleza é a grande adesão da substância entre crianças e adolescentes. Segundo o juiz titular da 5ª Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza, Darival Beserra Primo, 90% dos menores que cometem crimes estão envolvidos com drogas. Destes, mais de 50% dos casos já são decorrentes da “pedra”.
O pior disso tudo é que o contato com a droga acontece cada vez mais cedo. Crianças de oito anos já podem ser vistas consumindo crack na rua, segundo uma das coordenadoras pedagógicas da Associação Barraca da Amizade, Iara Lima, que trabalhou como educadora de rua por 10 anos.
Ela lembra que, em meados de 1996, as crianças chegavam à rua com 12 anos. “Hoje, você encontra crianças de 6 anos perambulando”, diz. Segundo ela, o acesso à droga era restrito aos adolescentes mais velhos, de cerca de 16 anos. “O próprio grupo tinha cuidado com os meninos menores, eles não podiam usar droga”, explica.
O problema aumenta porque, muitas vezes, esses menores atuam a serviço de traficantes. Segundo a agente de saúde Sueli Vieira, voluntária do Projeto Meninos de Deus, do Conjunto Santa Filomena, crianças de nove anos já são “aviões” do tráfico. “Tem criança que é ´doida´ para crescer e ser igual ao ´fulano´. É o modelo que eles têm. O cara que manda dentro da comunidade é o traficante”.
Outro agravante, na opinião de Iara e da coordenadora do Projeto Ponte de Encontro, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, Patrícia Queiroz, é o tipo de droga consumida. “Antes, os meninos faziam uso de cola e solvente. Essas substâncias foram trocadas: hoje, eles usam o crack”, lamenta, Patrícia, que também coordena o Núcleo de Prevenção e Redução de Danos do Município (Nupred).
Números relativos ao funcionamento do Projeto Ponte de Encontro em 2009, até o último mês de julho, mostram o alto grau de consumo de crack entre crianças e adolescentes. Dos 82 menores em situação de moradia de rua atendidas no projeto, 67 disseram fazer uso de drogas, 33 deles, de crack. O número é inferior apenas ao dos usuários de cola. A droga foi o motivo mais citado por eles para a ida à rua: 12,19%.
Conflito com a lei
Diariamente, cerca de 12 adolescentes são encaminhados à 5ª Vara da Infância e da Juventude, onde são definidas as medidas socioeducativas a serem cumpridas por menores em conflito com a lei. Às segundas-feiras, conforme Darival Beserra Primo, esse número é superior a 20 adolescentes, por conta do grande número de ocorrências aos fins de semana. “Já chegou a ter 28 (adolescentes) numa segunda-feira”, conta o juiz.
Na opinião do magistrado, o avanço do crack está relacionado à degradação da família. “Não há diálogo, a maioria enfrenta problemas econômicos muito graves. Pais e mães trabalham o dia todo, e a escola tem uma qualidade altamente duvidosa. Tudo isso dá espaço para a ação dos traficantes”, analisa. Ele lembra que, muitas vezes, os próprios pais são usuários.
No tocante ao tratamento na rede de saúde, Darival Beserra critica a falta uma clínica pública para onde os viciados possam ser encaminhados depois de passar pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) ou mesmo por internações.
Atualmente, o Estado tem convênios com três comunidades terapêuticas: Desafio Jovem, Leão de Judá e Instituto Volta Israel, mas são disponibilizadas apenas 45 vagas. Além disso, o Hospital de Saúde Mental de Messejana opera o setor Elo de Vida, que disponibiliza 30 vagas pós-internação, mas sem pernoite no hospital (os pacientes voltam para casa). “Só o trabalho ambulatorial não resolve. Depois da desintoxicação, tem que haver um acompanhamento, pois a crise de abstinência do usuário é terrível”.
Por conta da falta de espaços públicos de tratamento, a única saída para esses jovens, segundo o juiz, é “a prisão, a morte ou continuar promovendo crimes”. Entre as opções citadas, a única solução aceitável seria a internação em centros educacionais para menores em conflito com a lei, mas a ressocialização também é um desafio. Conforme o magistrado, as unidades chegam a ter seis vezes mais internos do que a capacidade. “Esses menores são muito mais vítimas do que agressores. Enquanto isso, a sociedade quer prisão preventiva, toque de recolher, redução da maioridade penal…”. O ideal seria investir em prevenção e, em último caso, tratamento.
HISTÓRIAS
Crack faz garotos entrarem no crime
Mário (nome fictício*), 16, consumiu crack dois dias, mas deixou. “Vi que não era pra mim”, explica. O efeito destruidor da substância, porém, o pegou de outra forma. Tornou-se traficante no começo da adolescência. Vendeu drogas, principalmente “pedra”, por um ano.
Hoje, Mário participa do Projeto Meninos de Deus, no Parque Santa Filomena. Deve à vida ao educador Paulo Uchôa, voluntário do projeto. “Encostaram uma 12 (arma) na minha cabeça”, lembra. O assassinato seria um acerto de contas do tempo em que Mário traficava. Na hora H, o adolescente foi poupado porque um dos traficantes percebeu que o menino está sob “a guarda” de Paulo.
Distante dali, em Aquiraz, o estudante Daniel (*), 19, segura as lágrimas. Internado em uma das casas de recuperação do Projeto Volta Israel, lembra que viu um dos tios morrer em seus braços, por dever um celular a um traficante. “Com 21 anos, ele (o tio) não construiu nada. Não quero acabar que nem ele. Quero construir alguma coisa”, chora. Antes, outro tio dele, também usuário de crack, já havia sido morto.
Por influência dos tios, o jovem começou na droga. “Primeiro, vi eles (os tios) fumando maconha. Vi as amizades que tinham, as mulheres que andavam ao redor deles. Para me mostrar, comecei na maconha, com 14 anos”. Um ano depois, estava viciado na pedra. “Toda vida, quando tinha um problema, corria para ela”, lembra.
Para sustentar o vício, roubou celular, dinheiro, bicicleta, quase foi linchado ao roubar uma máquina digital e não conseguir fugir. Uma semana antes de dar entrevista, viu o tio morrer e internou-se pela terceira vez, depois de seguidas recaídas. Em tempo: Daniel quer ser engenharia mecânico e soldado do Ronda do Quarteirão.
DADO PREOCUPANTE
67% dos menores de rua são usuários
Um ano. Esse é o período limite no qual o poder público deve intervir para evitar o contato com as drogas, de menores em situação de rua. A Pesquisa Anual Sobre a Vivência de Crianças e Adolescentes em Situação de Moradia nas Ruas de Fortaleza, feita em 2007 e divulgada no ano passado, mostra que 67% das 411 crianças e adolescentes que identificadas nas ruas usam drogas. Esse índice aumenta cada vez mais a partir de quando o menor de idade já vive há um ano na rua.
A pesquisa foi feita numa parceria entre o Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e a Equipe Interinstitucional de Abordagem de Rua, que reúne instituições públicas e não-governamentais que trabalham com a infância.
Segundo as conclusões da pesquisa, em até um ano de permanência na rua, o uso de drogas é dito como menos intenso pelos menores de idade. Depois desse período, a situação é exatamente a oposta: os meninos, em sua maioria, se dizem usuários. Entre os que vivem há mais de cinco anos na rua, quase não há casos de abstinência em relação ao uso de substâncias químicas.
Outro dado preocupante da pesquisa é que 15, 3% dos encaminhamentos feitos pelos educadores sociais aos meninos na rua são para os Centro de Assistência Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), os principais equipamentos disponíveis para tratamento na rede pública.
“Contudo se tem 67,11% de jovens usando drogas, para onde os outros são encaminhados? Muitos vão para abrigos, onde os profissionais não têm qualificação para esse tipo de atendimento”, admite o relatório final da pesquisa, elaborado pelos sociólogos Domingos Abreu e Natália Pinheiro Xavier, ambos pesquisadores do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
PROJETO MENINOS DE DEUS
Um ano longe do crime
O local parece ser abandonado pelo poder público. Falta saneamento básico. Os três campos de futebol da comunidade são particulares. O açude é contaminado. E, desde 2006, mais de 40 jovens já morreram em um raio de três quilômetros quadrados.
Este é o Parque Santa Filomena, na Grande Messejana, onde 46 jovens de 12 a 21 anos provam que dá para mudar a história de quem parecia estar condenado. Beneficiados pelo Projeto Menino de Deus, eles estão há um ano sem cometer crimes.
Antes, cerca de 70% deles já se envolveram com tráfico de drogas e roubos, segundo estima o educador Paulo Uchôa, um dos voluntários do projeto, desenvolvido pelo Conselho Nova Vida, em parceria com a Rede de Articulação do Jangurussu e ONGs como a Visão Mundial.
Os jovens participam de um pacto de “não vacilar”, ou seja, não voltar ao crime. Parte da integridade deles é garantida por um trato que Paulo Uchôa fez com os traficantes de não “mexerem” com os meninos. A agente de saúde e voluntária Sueli Vieira acredita que a recuperação desses meninos prova que é possível tirar os jovens da criminalidade. “A gente vai provar para o poder público que, se ele quiser fazer, ele faz”. ”
PROTAGONISTA
Infância marcada por drogas, roubos e agressões
Cleiton tem apenas 15 anos, mas mora na rua desde os seis. Vivia com a mãe, mas saiu de casa e prefere não revelar o porquê. Fora do lar, teve o primeiro contato com as drogas. Começou na cola, passou para o solvente e logo depois chegou ao crack. Para sustentar o vício, pedia dinheiro nas casas e no Terminal da Parangaba. Quando a grana não aparecia, a saída era roubar. “Roubava por necessidade”, defende-se. Por isso, chegou até a apanhar de policiais. A história que poderia terminar em tragédia só mudou depois que Cleiton passou a dormir na Barraca da Amizade, entidade que assiste a crianças e adolescentes. Hoje, estuda e não usa mais droga. “Quero terminar os estudos para sustentar minha família”, sonha.
PESQUISA
411 crianças e adolescentes em situação de rua foram identificados no estudo. O conceito vale para meninos que estão, no mínimo, há dois dias e duas noites ininterruptas na rua
101 menores disseram consumir crack. A droga é a segunda mais usada, só perdendo para a cola (114)
13,5% dos meninos citaram a droga como o principal motivo para sair de casa, a terceira resposta mais citada, depois de trabalho infantil e miséria
ÍCARO JOATHAN REPÓRTER