“Só Deus sabe como estou aqui”: roda de conversa em Pacatuba acolhe vítimas de violência doméstica com escuta e rede de apoio
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- 18-06-2025
“Ele foi até a minha casa e começou a atirar. Dois tiros atingiram meu filho de sete anos. Um na cabeça. O outro no bumbum. Meu filho está vivo por um milagre. E eu… eu só quero justiça. Só quero me sentir segura de novo. E hoje, aqui, pela primeira vez, estou sentindo isso: a justiça perto. Disposta a me ouvir.”
A voz não tem nome, nem rosto. Mas carrega todas as marcas de uma mulher que sobreviveu ao que parecia impossível. O que a trouxe até o Fórum de Pacatuba foi o desejo de recomeçar. A dor da perda, o medo ainda pulsando, e um mês desde a morte da mãe — abalada por tudo o que aconteceu. Mesmo assim, ela foi. “Só Deus sabe como estou aqui.”
Foi para histórias como a dela que a roda de conversa foi criada. Realizada pela terceira vez na Comarca e pela primeira neste ano, a iniciativa nasceu do compromisso com o cuidado. É um espaço de escuta e acolhimento para mulheres vítimas de violência doméstica, reunindo uma rede interinstitucional: Delegacia da Mulher, Casa da Mulher, profissionais da saúde e assistência social, Patrulha Maria da Penha, Defensoria Pública, Ministério Público e o Judiciário.
À frente da ação está a juíza Bruna Rodrigues, titular da 1ª Vara da Comarca de Pacatuba. Reconhecida nacionalmente com o Prêmio Juíza Berta Lutz, Bruna conduz o projeto com o olhar de quem acredita que justiça também se faz com empatia.
“A concessão da medida protetiva é o começo. Mas é o mínimo. Essas mulheres precisam de muito mais: precisam saber que não estão sozinhas, precisam confiar na rede que existe para apoiá-las. É por isso que, sempre que concedo uma medida protetiva, já marco uma data para que ela venha até a roda de conversa. Aqui, ela pode olhar nos olhos da juíza, da defensora, da delegada, da psicóloga. Ela tem voz. E nós estamos aqui para escutar.”
Mais do que uma prática jurídica, a roda é um gesto humano. Um braço estendido. Um abrigo simbólico. Um sopro de reconstrução em meio aos estilhaços. A iniciativa cumpre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e promove, de forma concreta, políticas públicas voltadas para a equidade de gênero e a prevenção à violência.
“Na primeira edição, escutamos relatos que nos fizeram repensar os nossos próprios procedimentos. Uma mulher nos disse que nunca antes alguém havia parado para ouvi-la sem julgamentos. Aquilo nos tocou profundamente. E passamos a reavaliar, junto a todos os envolvidos, onde ainda estávamos falhando. Essa escuta ativa é transformadora”, reforça a juíza.
Presente ao encontro, a técnica judiciária Kássia Lanelly, integrante do Comitê de Equidade de Gênero do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), também destacou o valor simbólico e prático de ações como essa. “A atuação do Comitê vai além dos muros do Tribunal. Nós queremos estar perto das unidades, apoiando iniciativas que promovam a equidade de gênero de forma efetiva. A violência contra a mulher atinge não apenas a vítima, mas atravessa toda a estrutura social. Quanto mais mulheres em espaços de gestão e decisão, mais profundo será o olhar sobre essas questões. E mais humanas serão as políticas implementadas”, afirmou.
ELAS PODEM CONFIAR
A roda também é um lugar de escuta rara e necessária. Para muitas mulheres, é a primeira vez que conseguem contar o que viveram — com liberdade, com segurança, com respeito. Elas falam de traumas, de medos antigos, de marcas visíveis e invisíveis. E, aos poucos, vão reencontrando o caminho da reconstrução.
Uma delas relatou, com voz trêmula, a tentativa de feminicídio que quase tirou a vida do filho. Outras narraram anos de abuso psicológico, violência física, abandono. E todas, de alguma forma, encontraram um sopro de dignidade no encontro.
A Patrulha Maria da Penha também atua como sentinela nesse processo. Casos com maior risco de agravamento são monitorados com atenção redobrada, como explica a juíza Bruna Rodrigues. “Acompanhamos semanalmente os processos com medidas protetivas e identificamos aqueles com maior potencial de evoluir para o feminicídio. O uso de drogas, transtornos mentais ou reincidência são sinais de alerta. E também olhamos com cuidado os casos em que a mulher ainda deseja manter a relação, mas precisa de proteção. A Justiça não pode olhar só a agressão isolada. É preciso enxergar a vida como um todo. É sobre restaurar o bem-estar, o vínculo, a dignidade.”
Em Pacatuba, a Justiça tem escuta, tem nome, tem abraço. Tem espaço para a lágrima e para a esperança. Para cada mulher que se senta naquela roda e rompe o silêncio, uma parte da estrutura do medo começa a desmoronar. Porque quando a Justiça se faz próxima, firme e humana, o grito por liberdade deixa de ecoar sozinho.



