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Gesto viola direitos básicos

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02.05.11
Cidade
A Estrutura familiar enfraquecida é apontada como principal causa para que crianças façam das ruas o seu novo lar e das esmolas o seu meio de sobrevivência. Muitas também são obrigadas pelos pais a pedir
FOTOS: KIKO SILVA
A campanha busca conscientizar população e dar dignidade a crianças e adolescentes
O afastamento da escola, a moradia nas ruas e as drogas são consequências trazidas pela mendicância
Crianças de pés descalços, com a roupa e o rosto sujos nas calçadas de Fortaleza, estendendo as mãos, cartazes mal escritos ou, até mesmo, fazendo malabarismo em busca de um trocado qualquer. Sensibilizadas pela fragilidade infantil, não raro, pessoas tiram do bolso moedas na esperança de estarem fazendo algo de bom para esses meninos e meninas. Um quadro desolador cada vez mais comum nas ruas da capital cearense.
O que muitos não se dão conta é que o simples gesto reforça a situação de exclusão e vulnerabilidade em que essas crianças se encontram. Longe da escola e de um ambiente familiar adequado, elas ficam expostas à violência, ao abuso e às drogas. Dar esmolas significa contribuir para a permanência do problema. É o que afirma Ivanira Melo, conselheira tutelar em Fortaleza. Segundo ela, a esmola incentiva esses jovens a não querer estudar e, mais na frente, a não trabalhar, além de mantê-los mais tempo nas ruas.
Causas
A conselheira aponta ainda uma estrutura familiar enfraquecida como a principal causa para que crianças façam das ruas o seu novo lar e das esmolas o seu meio de sobrevivência. Muitas entram também na mendicância através da obrigação imposta pelos pais de contribuir com o orçamento familiar. “É muito comum os responsáveis pelas crianças as colocarem para trazer o sustento para dentro de casa. Abuso, maus tratos e abandono na família fazem com que elas prefiram fugir”, afirma.
Assim aconteceu com Felipe (nome fictício), de 12 anos. Aos nove, o garoto escolheu viver nas ruas para fugir dos maus tratos do pai. “Aqui eu não tenho que apanhar todo dia”, conta. Hoje Felipe é viciado em crack e vive de pedir esmola para alimentar o corpo e o vício. “Eu peço toda hora. Para ter o que comer e para a marica (crack)”. Pedir esmolas passa a ser porta de entrada para a moradia na rua e para a dependência de substâncias químicas.
Uma pesquisa realizada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável, de maio a junho de 2010, revela que das 23.973 crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil, cerca de 30% pedem esmola para conseguir alimento ou dinheiro nas ruas.
Segundo Manoel Torquato, secretário geral da ONG Pequeno Nazareno e coordenador da Equipe Interinstitucional de Abordagem de Rua, o crack é o principal obstáculo para o resgate das crianças que se encontram nessa situação.
De acordo com ele, a falta de políticas públicas na área agrava ainda mais esse cenário. “Os abrigos não têm como atender ao processo de desintoxicação. Não existe uma política de retaguarda para atender à demanda nem que combata a entrada do crack na cidade. Isso dificulta a saída da criança das ruas e da mendicância”, ressalta. Manoel reforça ainda que é preciso propor ações que pensem a recolocação desses meninos e meninas na sociedade para que se possa combater o problema de forma efetiva.
De acordo com dados da Equipe Interinstitucional de Abordagem de Rua, há hoje, em Fortaleza, 191 criança se adolescentes em situação de moradia de ruas, dentre as quais a mendicância é a atividade mais comum. “Esse número dá conta dos jovens que moram mesmo na rua. Existem os que voltam para a casa e não são atendidos por nenhum programa social. Então esse número, na verdade, é maior”, alerta Manoel Torquato.
“NÃO DÊ ESMOLA”
Campanha conscientiza população
Com o lema “Não dê esmola à criança em situação de rua. Construa um cidadão”, uma campanha realizada pelo Ministério Público do Ceará, em parceria com o Conselho Comunitário da Parangaba e as Secretarias Executivas Regionais da Prefeitura de Fortaleza, busca alertar a população para as consequências do ato de dar esmolas a crianças e adolescentes. A ação será lançada no próximo dia 7, no bairro Bom Jardim.
Segundo o promotor de Justiça da 14ª Vara da Família, Edson Landim, facilitador geral da campanha, é preciso fazer com que a sociedade compreenda que dar dinheiro a crianças nas ruas contribui para a situação de exclusão e violação de direitos em que se encontram. “A mendicância não resolve o problema desses meninos e meninas e contribui para a sua permanência nas ruas, expondo-os ao acesso a substâncias químicas e à violência”, afirma.
Para o promotor, o investimento em educação de qualidade é um dos caminhos para solucionar o problema. “Eu defendo que a escola tenha um tempo integral e desperte o interesse pelos estudos. É necessário também implantar políticas sociais de resgate da família como base para essas crianças. Todos os entrevistados no início da campanha não tinham família estruturada, eram vítimas de violência. Esse é um dado muito grave”, ressalta.
Esta é quarta edição da campanha, que já foi realizada durante o ano passado nos bairros da Parangaba, Bela Vista e Vila Velha. Em 2010, só nos terminais da Parangaba e da Lagoa, foram encontradas 43 crianças em situação de mendicância. Embora não exista uma pesquisa específica que contabilize os dados, o promotor afirma que depois da ação esse número já diminuiu em cerca de 40%. “Os comerciantes e moradores da região já notam a diferença. Esse é um resultado significativo”, explica.
Os bairros compreendidos pela SER VI serão os próximos a receber a iniciativa, que segundo Landim, deve se expandir por todo o Estado.
“Queremos dar dignidade às nossas crianças. Queremos que a sociedade e o poder público despertem para seus direitos. É preciso tirá-las das ruas e garantir seu desenvolvimento”, finaliza.
REGINA PAZ
ESPECIAL PARA CIDADE
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Outro olhar público é possível
A presença de crianças em situação de moradia nas ruas e mendicância constitui inconteste revelação de inúmeros e graves problemas sociais: um falho sistema escolar, que enfrenta dificuldades, com elevada incidência, em manter as crianças em sua dinâmica; a conivência ou tolerância com a exploração do trabalho infantil e com atos de violência impingidos a essa classe; a arraigada hierarquia, em nosso esgarçado tecido social, na valorização da vida, que atribui desvalia ao estar no mundo de crianças e adolescentes das classes subalternas. Inverter essa ordem do trato público dispensado a crianças, particularmente as integrantes de classes populares, por certo trará outra configuração de sua relação com as ruas, com a cidade e suas vivências cotidianas infantis. Para tanto, é necessário enfrentar, radicalmente, a flacidez crônica na efetivação de políticas sociais básicas universais; concretizar transformações de significados e práticas culturais, que impliquem na priorização de recursos orçamentários e iniciativas, pelo poder público e pela sociedade civil, voltados para a promoção e defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes, de forma universal e com respeito às suas diferenças.
Ângela Pinheiro
Psicóloga e professora da UFC
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