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“Justiça em Libras” promove júri em escola pública e desperta em estudantes surdas(os) o interesse em conhecer seus direitos

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“A informação que eu tinha era de que não havia muita acessibilidade no Judiciário. Agora, sei que há intérpretes no Fórum. Isso me dá certo conforto”. Foi com esse pensamento que o estudante surdo Francisco Wilame do Nascimento Rodrigues, 19 anos, se expressou após participar do júri simulado promovido pelo projeto Justiça em Libras, uma iniciativa inédita do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE).

Realizado nesta quita-feira (27/11), o júri simulado foi feito com e para os estudantes que possuem deficiência auditiva, no Instituto Cearense de Educação dos Surdos (Ices). Para Wilame, o momento representou a oportunidade de entender sobre o universo do Direito e até mesmo de refletir sobre um possível ingresso na carreira. “Estou analisando as possibilidades, mas me interessei, sim, pela área”, reconhece o jovem que cursa o 1º ano do Ensino Médio.

Na ocasião, Wilame e outros sete jovens simularam o júri de um caso de racismo, desenvolvido por eles mesmos, enquanto outros estudantes acompanhavam atentos à esquete. Eles estiveram desempenhando o papel de juiz, promotor, defensor, réu e jurados, sob a supervisão de profissionais que já atuam no Sistema de Justiça. Um intérprete traduziu os diálogos para o público ouvinte presente. Embora o crime de racismo não seja julgado pelo Tribunal do Júri — que atua apenas em casos de homicídio e tentativa de homicídio —, o júri simulado teve caráter exclusivamente educativo. A proposta foi oferecer uma experiência prática aos estudantes, que puderam escolher temas vivenciados no dia a dia.

A estudante surda Ana Andressa Fernandes, 18, participou do júri narrando a história na Língua Brasileira de Sinais (Libras). Ela gostou e disse que a atividade é importante no sentido de apresentar os direitos da pessoa surda. “Eu preciso saber dos meus direitos, por ser uma pessoa surda, mulher, preta”, reforça.

A professora do Instituto Cearense de Educação dos Surdos (Ices), Germana Lima, atuou como juíza e enfatiza a importância de a pessoa que é surda conhecer seus direitos, entendimento que também é difundido a partir do júri simulado. “Antigamente, havia uma barreira na comunicação e hoje alguns órgãos já contam com intérpretes, que é o caso do Tribunal. Seria interessante que os profissionais conseguissem ter essa comunicação direta, sem os intérpretes”, afirma Germana, que tem deficiência auditiva.

Ela acredita em um futuro em que a Lei da Libras (nº 10.436/2002) será amplamente respeitada e as pessoas com surdez terão mais facilidade de comunicação nos diversos espaços. “Somos cidadãos como qualquer outra pessoa e precisamos que nossos direitos e a nossa Língua seja respeitada”.

 

“SE REORGANIZAR, PARA ACOLHER”

 

Para a defensora pública da 1ª Defensoria do Tribunal do Júri, Liana Lisboa, iniciativas como essa não só aproximam as pessoas com deficiência do aparelho jurídico, mas também possibilitam que a própria Justiça entenda as necessidades e especificidades da Pessoa com Deficiência (PcD). “Acho que existem dois aspectos: o primeiro no que diz respeito aos alunos se enxergarem, vislumbrando possibilidades de eles integrarem o Sistema de Justiça. É importante que eles vejam que podem ocupar esse espaço e que a gente crie oportunidades, estrutura e possibilidades para isso”.

 

Vários homens e mulheres que posam para foto no auditório
Equipe de jovens que participou do júri simulado. Eles atuaram como juiz, promotor, defensor, réu e jurados 

 

O outro aspecto se refere ao olhar partindo das instituições para a comunidade surda, segundo a defensora. “Acho que é necessário estar em contato com essas comunidades e entender as suas demandas e como a gente precisa se reorganizar, enquanto instituição, para acolher. Quando encontramos essa realidade, entendemos o que estamos fazendo de errado e podemos qualificar as nossas instituições”.

 

O JÚRI VAI ATÉ A ESCOLA

 

Outro profissional que contribui com o projeto dando orientações aos jovens é o promotor de Justiça Rafael Matos de Freitas Morais. “A partir do momento que a gente tira o Tribunal do Júri do ambiente forense e traz para a esfera escolar, o efeito é de exacerbação da experiência democrática. Nós mostramos que a Justiça é para todos os estudantes e eles se sentem naturalmente motivados e, quem sabe, no futuro, possam fazer parte, sejam como servidor, magistrado, membro do Ministério Público, defensor ou advogado.”

 

“HÁ ESSA IDENTIDADE”

 

Os trabalhos foram supervisionados pelo juiz Marcos Aurélio Marques Nogueira, titular da 1ª Vara do Juri de Fortaleza, e que conta com 12 anos na magistratura. Ele informa que o júri tem a missão de julgar crimes importantes e é composto pela sociedade. “No Tribunal do Júri, a sociedade é chamada para julgar casos relevantes e os estudantes são parte da sociedade. Também há essa identificação, essa aproximação da carreira jurídica, possibilitando que eles conheçam os caminhos profissionais possíveis”.

 

FOCO NAS PESSOAS SURDAS

 

O Justiça em Libras tem como objetivo disponibilizar o conhecimento da área do Direito para estudantes surdos de Fortaleza promovendo a inclusão e a acessibilidade de pessoas com deficiência no Judiciário cearense. Também visa despertar neles o interesse e a vocação para seguirem carreira no Direito e aproximar cada vez mais o TJCE da população surda.

O projeto foi lançado em 29 de abril deste ano por meio de convênio entre o TJCE, o Instituto Cearense de Educação de Surdos (Ices), o Instituto Filippo Smaldone e a Associação de Pais e Amigos do Deficiente Auditivo (Apada).

 

Foto geral com todas e todos que participaram do evento
O projeto mobilizou professoras(es) e alunas(os) com o objetivo de promover a inclusão e acessibilidade na Justiça

 

Além da realização de júris simulados nas instituições, a iniciativa viabilizou, no dia 11 de agosto deste ano, uma sessão de julgamento real com intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para os jovens. Produziu, ainda, uma série de videoaulas sobre a estrutura e o funcionamento do Poder Judiciário estadual e as disponibilizou para transmissão em salas de aula.

 

DE OLHO NA DATA

 

Para encerrar o Justiça em Libras 2025, no próximo dia 15 de dezembro, a partir das 13h30, será realizado o júri simulado na Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos (Apada). Ao todo, 51 profissionais vinculados à Apada prestam serviços ao Poder Judiciário cearense, uma parceria que já tem 27 anos.

 

ACESSIBILIDADE NO TJCE

 

Atualmente, o TJCE conta com 11 intérpretes de Libras contratados que trabalham nas sessões de julgamento das Câmaras, Órgão Especial e Pleno, além do Arquivo do Fórum Clóvis Beviláqua (FCB). Eles também atuam em solenidades e em audiências quando há necessidade de tradução (quando uma das partes é pessoa surda, por exemplo).

Já na Diretoria da Central de Atendimento do Judicial são 17 colaboradoras(es) que sabem se comunicar em Libras, entre supervisores, coordenadores, operadores de atendimento e integrantes da triagem.

De acordo com o Censo 2022, realizado e divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Ceará possui 129,3 mil pessoas com dificuldade permanente para ouvir, mesmo usando aparelhos auditivos. No Brasil, esse quantitativo passa de 2,5 milhões de residentes.

 

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