Da unidade pioneira à política estadual: A estrutura da audiência de custódia no Ceará
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- 03-09-2025
Por Luís Carlos Silva e Yasmim Rodrigues – Jornalistas
Há uma década, o Estado do Ceará deu um passo decisivo em sua trajetória ao incorporar a audiência de custódia como prática permanente. No período que segue, medidas importantes foram tomadas para que esse trabalho seja conduzido com eficiência e segurança, com a definição de um fluxo de atividades e a criação de uma infraestrutura especializada.
A terra do jurista Clóvis Beviláqua destacou-se nesse campo ao instalar, em agosto de 2015, a Vara Única Privativa de Audiência de Custódia de Fortaleza. Criada pela Resolução nº 14/2015 do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), a unidade foi posteriormente ampliada, consolidando-se como um importante mecanismo que exige constante articulação interinstitucional e capacidade de resposta diante de uma demanda crescente.
O processo de fortalecimento prosseguiu com a interiorização da iniciativa: em 2022, sete anos após a instalação da Vara Privativa de Audiência de Custódia da Capital, teve início a criação dos Núcleos Regionais de Custódia e Inquéritos — atualmente denominados Núcleos Regionais de Custódia e das Garantias. Estruturados em sete regiões do Estado, esses núcleos passaram a contar com a atuação do juiz das garantias, constituindo relevante avanço na tutela dos direitos fundamentais e no reforço das garantias processuais.
Prevista na Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça, a audiência de custódia assegura que toda pessoa presa seja apresentada a uma autoridade judicial no prazo máximo de 24 horas. Nesse ato, a magistrada ou o magistrado deve: verificar a legalidade da prisão; apurar indícios de maus-tratos, violência ou tortura; e avaliar, à luz do caso concreto, a medida mais adequada e proporcional. A decisão pode resultar na conversão da prisão em flagrante em preventiva ou, sempre que possível e juridicamente cabível, na concessão de liberdade, com ou sem imposição de medidas cautelares diversas.

Em 2024, 20.184 audiências de custódia foram realizadas no Ceará. Nos primeiros sete meses de 2025, esse número já alcança 14.300 sessões, de acordo com dados do Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões 3.0 (disponível neste link). Conforme a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), esse procedimento é realizado em todas as modalidades de prisão: flagrante, preventiva, temporária, preventiva para fins de extradição, por descumprimento de medidas cautelares e definitiva para fins de execução penal.
Após um período inicial de funcionamento nas dependências do Fórum Clóvis Beviláqua (FCB), a Vara de Custódia de Fortaleza passou a contar com sede própria, anexa à Delegacia de Capturas (Decap), na Capital. Inaugurado em 7 de agosto de 2017, o espaço dispõe de estrutura física integrada, com quatro salas de audiência em funcionamento simultâneo, além de um parlatório destinado ao diálogo reservado entre advogados e clientes. O prédio conta, ainda, com áreas específicas para o atendimento da pessoa presa por equipe multidisciplinar composta por psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais de apoio.
Além do Poder Judiciário, o espaço dispõe de salas específicas para os integrantes do Ministério Público do Estado (MPCE), da Defensoria Pública Geral (DPGE), da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Ceará (OAB/CE), da Coordenadoria de Alternativas Penais (COAP) e do Projeto Proinfância. Também possui um local destinado à coleta biométrica, essencial para identificação civil das pessoas privadas de liberdade.

A juíza Adriana da Cruz Dantas, que é responsável pela coordenação da Vara, ressalta a importância da atuação de todos esses agentes, destacando que esse alinhamento é essencial para alcançar o objetivo de fazer justiça, sem comprometer a dignidade humana. “A audiência de custódia é resultado da atuação integrada de diversos profissionais, cada um com atribuições próprias, mas que se articulam de maneira complementar. Essa articulação, que reúne atores jurídicos, técnicos e profissionais de saúde, garante que esse mecanismo seja um espaço de avaliação integral da prisão, permitindo não apenas o controle de sua legalidade, mas também a identificação de situações de vulnerabilidade, a prevenção de abusos e a tomada de decisões mais justas e humanizadas”, afirma.
Assim como na canção Cotidiano, de Chico Buarque, que retrata a repetição das ações ao entoar que “todo dia ela faz tudo sempre igual”, a rotina da unidade segue um ritmo quase coreografado, em que cada etapa, apesar da recorrência, desempenha um papel essencial para o bom andamento dos trabalhos. No entanto, diferentemente da repetição mecânica tratada na música, esse procedimento é permeado pela atenção à singularidade de cada caso.
Após a prisão, a pessoa privada de liberdade é encaminhada à Perícia Forense para realização do exame de corpo de delito. Em seguida, é conduzida à Decap, onde permanece recolhida até a audiência. Posteriormente, é apresentada à Vara de Custódia e direcionada a uma cela específica no interior do prédio.
Durante esse processo, o(a) detido(a) também passa pela equipe do Atendimento à Pessoa Custodiada (Apec), responsável por identificar necessidades imediatas, elaborar um relatório com informações sociais e apontar indicadores de vulnerabilidade. Esse documento pode incluir sugestões de encaminhamento para serviços de proteção social e políticas públicas.
Antes de ingressar na sala de audiência, a pessoa sob custódia tem direito a uma conversa reservada e sigilosa com um defensor público ou advogado particular. Em seguida, é conduzida ao ato judicial, que conta com a presença da juíza ou juiz responsável, representante do Ministério Público, profissionais da Defensoria Pública ou da advocacia privada, além de um(uma) servidor(a) do Tribunal encarregado(a) do preenchimento do termo e de um policial militar designado para a escolta, o qual, obrigatoriamente, não pode ter participado do momento da prisão.

Para a magistrada Adriana Dantas, respeitar cada uma dessas etapas é “fundamental para o cumprimento dos prazos legais relacionados à prisão. Além disso, esse passo a passo garante transparência e eficiência processual, com a rápida avaliação da situação da pessoa custodiada”.
Com uma rotina marcada pela exigência de eficiência e celeridade, a Vara de Custódia de Fortaleza enfrenta uma elevada demanda, que impõe atuação criteriosa e constante. Diariamente, são realizadas dezenas de audiências, cujas decisões impactam de forma imediata e significativa a vida das pessoas envolvidas no processo. O elevado volume de casos reflete não apenas o fluxo contínuo de demandas, mas também evidencia a relevância de dispor de uma força de trabalho qualificada e preparada para assegurar a efetividade da atividade jurisdicional.
Desde 2017 atuando na unidade especializada da Capital, o atual supervisor, Vinícius Toledo, destaca que esse ambiente se consolidou “como um espaço de defesa da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da racionalização do sistema prisional, sendo reconhecida como um marco de modernização e humanização da justiça criminal no Ceará”.
A ampliação das audiências de custódia para o Interior do Estado inicia em 2022, com a implantação dos Núcleos Regionais de Custódia e de Inquéritos, em Juazeiro do Norte, Iguatu, Quixadá, Caucaia, Sobral e Crateús. A partir de 2024, essas unidades passam a se chamar Núcleos de Custódia e das Garantias (NCG), sendo responsáveis pela implantação de outra importante inovação no sistema de justiça criminal: a figura do juiz das garantias, que visa garantir a ampliação do direito à defesa e fortalecer a imparcialidade do processo penal.
Com a introdução desse mecanismo, em 2019, no Código de Processo Penal (CPP), e após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em 2023, confirmou sua constitucionalidade, os processos criminais passam a contar com a atuação de dois juízes: um na fase investigatória (o juiz das garantias) e outro na fase processual, chamado juiz da instrução, que atuará apenas a partir do oferecimento da denúncia.
No Ceará, a implantação do juiz das garantias foi regulamentada pela Resolução do Pleno do TJCE nº 14/2024, seguindo as diretrizes da Resolução nº 562/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desde então, além de realizar audiências de custódia, a magistrada ou magistrado responsável pelo NCG também profere decisões acerca de medidas cautelares e zela pelo controle da legalidade da investigação criminal, exceto em casos de violência doméstica e familiar, fatos que envolvam organizações criminosas ou relacionados a crimes dolosos contra a vida, para os quais existem varas especializadas.
À frente do 1º NCG, localizado em Juazeiro do Norte, o juiz Antônio Vandemberg Francelino Freitas lembra que, desde a inauguração, em junho de 2022, melhorias foram sendo gradativamente implementadas. “Identificamos as dificuldades e buscamos soluções para corrigir, facilitar e agilizar os fluxos dos procedimentos adotados”, pontua, ressaltando a importância do trabalho interinstitucional exercido ao lado de outros entes, que viabilizam, por exemplo, atendimentos multidisciplinares para os custodiados, entre eles, cuidados psicossociais, de alimentação, de vestimentas, de transporte para Municípios de origem, além do direcionamento para Centros de Referência de Assistência Social e outras medidas.
“Essencialmente, asseguramos aos custodiados e investigados os direitos fundamentais estabelecidos nas convenções e tratados internacionais de direitos humanos, acolhidos e inseridos na nossa Carta Magna, e regulamentados na legislação infraconstitucional”, explica o juiz Antônio Vandemberg.

O mais recente núcleo foi inaugurado em janeiro deste ano, na Comarca de Maracanaú, totalizando sete unidades no Estado. “Tendo em vista a alta demanda do 4º Núcleo, de Caucaia, houve a necessidade de dividir as cidades. O 7º Núcleo abrange grande parte das cidades da Região Metropolitana de Fortaleza”, destaca o juiz Victor Nogueira Pinho, responsável pelo 7º NCG.
Para o magistrado, a descentralização dos Núcleos de Custódia é uma medida inovadora e assertiva da Corte estadual. “O Poder Judiciário do Ceará foi um dos primeiros a implantar de fato a figura do juiz de garantias no Interior. A expansão colabora ainda com a efetividade da prestação jurisdicional e também com a atuação de forma geográfica, permitindo que o Judiciário esteja presente em todos os Municípios, mesmo que não de forma física. Há uma boa logística, que facilita o trabalho da Justiça e das forças de segurança”, afirma.
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