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Crime ou paranoia?

Ouvir: Crime ou paranoia?

14.09.2009 Sociedade / Polícia
O caso do italiano preso e indiciado na nova lei do estupro por ter beijado a filha revela como vai mal o combate ao turismo sexual no Brasil
Marco Bahe, de Fortaleza
O CENÁRIO E A DENÚNCIA
Um cliente (no alto) aborda uma garota de programa numa rua de Fortaleza. Abaixo, pai e filha
Um homem de meia-idade e uma menina brincam na piscina de um hotel. Ele a beija nos lábios com um selinho. Ajeita seu biquíni. Meia hora depois, outro beijinho. Os dois se divertem enquanto ele a ergue para arremessá-la na água. Ele tem 48 anos. Ela, apenas 8. Há algo de estranho nisso? Depende. Se o cenário for a capital brasileira do turismo sexual, Fortaleza, a resposta é sim. Foi lá que a cena descrita acima levou um casal de brasileiros a denunciar um italiano por supostamente abusar de uma criança na Praia do Futuro. Mas os dois eram pai e filha.
Pelo modo como se divertia em férias com a filha, o homem passou nove dias preso. Ganhou liberdade provisória na última quinta-feira, depois que a juíza Cristiane Maria Martins Pinto de Faria, da 10ª Vara Criminal do Fórum de Fortaleza, recebeu do Ministério Público parecer favorável. Mas foi indiciado com base no artigo 207 da Lei no 12.015, a nova lei do estupro. Se condenado, pode pegar de oito a dez anos de prisão. O italiano, que pede para ter sua identidade preservada, é casado há 11 anos com uma brasileira, Adriana Furtado. Os dois se conheceram na Itália, onde ela estudava. Vivem em Guidonia Montecelio, cidade próxima a Roma. Ele é construtor. Ela cuida da casa e da filha. ?Eu tentei explicar que é normal um pai beijar a filha na Itália. É normal em vários lugares do mundo. Mas eles não quiseram saber e chamaram a polícia?, disse a brasileira, referindo-se ao casal do Distrito Federal que fez a denúncia.
Para a terapeuta infantil Marta Vasconcelos, o selinho entre pais e filhos não é nada demais. ?Desde que seja um ato recíproco, e não para resolver uma carência, geralmente, do adulto?, diz. ?Na nossa cultura, é comum esses beijos se extinguirem naturalmente quando a criança entra na pré-adolescência, pois ela mesma passa a rejeitar o ato.?
O italiano e a filha foram denunciados por um servidor do Ministério da Justiça em Brasília e sua mulher. ?Ele (o italiano) passava a mão nas partes íntimas da garota e segurava ela como se estivesse abraçando uma pessoa adulta?, disse o denunciante. ?Aquilo nos incomodou até o ponto em que nós vimos o homem beijar a menina duas vezes na boca?, disse o denunciante. A intolerância do casal que fez a denúncia pode ter sido agravada pelo ambiente escolhido para passar as férias. De janeiro a junho deste ano, foram registrados 766 crimes, contra 538 no mesmo período do ano passado e 454 em 2007. Atos de conotação sexual, como atentado violento ao pudor e exploração de menores, somam 40% das denúncias. Na Praia do Futuro, é comum ver adolescentes oferecendo serviços sexuais por apenas R$ 10 a estrangeiros. Mas não foi isso que ocorreu na piscina do hotel.
Ninguém mais confirmou os supostos atos obscenos. Quatro funcionários da barraca que atendia os hóspedes negaram ter visto qualquer situação anormal. ?Observei a piscina o tempo todo, pois é essa minha função?, diz o monitor da piscina, Tiago de Souza Brito. ?Tudo o que vi foi brincadeira de pai e filha. Se tivesse notado qualquer coisa, eu mesmo chamaria a polícia.?
O cônsul da Itália no Recife, Francesco Piccione, foi a Fortaleza e levou documentos que provam que o acusado tem ficha limpa tanto na Itália quanto no Brasil. Também provou que o homem é casado de papel passado na Europa com a mãe da garota.
Para relaxar a prisão do italiano, a juíza exigiu que ele não se mude nem se ausente de sua residência italiana sem prévia comunicação à Justiça brasileira. Ele também deverá comparecer a todos os atos processuais no Brasil até o fim do julgamento. ?Tudo foi um grande engano, e tenho certeza de que esse processo logo será arquivado?, afirma o advogado Flávio Jacinto, que defende o acusado.
O italiano, a mulher e a filha já estão de volta à Itália. E não vão levar uma boa lembrança da cidade que escolheram para passar as férias. A lição que fica do episódio: prender um pai que beija a filha não é a solução para combater o turismo sexual.
ENTREVISTA
Adriana Furtado – ?Fomos vítimas de preconceito?
Em entrevista a ÉPOCA, a brasileira casada com o italiano preso diz que o marido podia ter morrido
ÉPOCA ? Como você classifica o episódio envolvendo sua família?
Adriana Furtado ? O que aconteceu conosco nunca deveria ter acontecido. Nós somos uma família normal, vivemos em harmonia. Meu marido foi preso por quê? Por ser um pai carinhoso com a filha? Não. Nós fomos vítimas de um grande preconceito. Porque as pessoas no Brasil não aceitam que um homem branco, um estrangeiro, possa ter contato físico com uma menina negra em público sem imaginar que ela pode não ser sua escravazinha sexual.
ÉPOCA ? Quem errou? O casal que fez a denúncia ou a polícia?
Adriana ? Todos erraram. Quem viu maldade no amor de um pai com sua filha errou. Mas errou também quem jogou um pai de família na cadeia só com base no depoimento de quem estava acusando. É preciso ter cautela, meu Deus. Meu marido passou nove dias preso, a pressão dele subiu muito, poderia ter morrido. Como nós ficamos agora? Não sei se minha família vai ser a mesma.
ÉPOCA ? Como está sua filha?
Adriana ? Ela ainda não está a par de tudo. Ela acha que a culpa é dela, por ter beijado o pai. Quando voltarmos para casa, para a Itália, vamos cuidar dela.
ÉPOCA ? O que vocês pretendem fazer agora? Pensam em pedir reparação de danos?
Adriana ? Não queremos nada de ninguém. Só quero agora é voltar para casa. A gente só quer nossa vida tranquila de volta.