O primeiro olhar da Justiça: Um dia na Vara de Custódia
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- 18-09-2025
Por Fernanda Aires – Jornalista
Eu cheguei cedo. O prédio ainda despertava, com cheiro de café no ar e os sons abafados de passos apressados pelos corredores. Nos movimentos dos profissionais que ocupavam seus lugares e davam início ao dia de trabalho, havia um sentido de urgência: ali, entre celas e salas, decisões precisam ser tomadas com o cuidado de quem segura não só um papel, mas o destino de alguém.
Acompanhei a rotina da Vara Privativa de Audiência de Custódia, no coração de Fortaleza. No andar superior, onde estão as salas da Defensoria Pública, do Ministério Público, da psicologia, o parlatório e as celas, vi um fluxo contínuo de pessoas recém-presas. Homens, em sua maioria. Roupas amassadas, olhares baixos, mãos trêmulas.
Segundo magistradas e magistrados que atuam na unidade, em dias mais intensos, são realizadas mais de 60 audiências de custódia. Os casos são variados: do rapaz detido por tentativa de furto àquele que foi preso por violência doméstica ou flagrado em outro crime grave.
A audiência de custódia é o primeiro momento em que a Justiça escuta quem foi preso e, ao analisar a legalidade da prisão, põe um freio a possíveis arbitrariedades. Um espaço onde o ser humano precisa ser visto como tal, independente dos caminhos que o levaram até ali e dos próximos passos que terá de percorrer no curso do processo judicial.
A partir das muitas histórias que escutei durante essa manhã, construí, para ilustrar os caminhos possíveis traçados a partir da audiência de custódia, três personagens fictícios, baseados nas vidas reais que passam por ali todos os dias: Bruno, Ramon e Jonas.
Cada um representa um desfecho possível da audiência de custódia: a prisão que permanece, com a conversão em preventiva; a liberdade concedida com uso da tornozeleira eletrônica, como medida intermediária; e a liberdade provisória com medidas cautelares mais brandas.
Bruno não olhava nos olhos de ninguém. Havia sido preso por tentativa de feminicídio, com histórico de violência doméstica e descumprimento de medida protetiva. Ramon, ao seu lado, também esperava ser ouvido. Fora detido por tentativa de furto. Já Jonas fora preso por receptação.
Antes de entrarem na sala de audiência, os três foram conduzidos ao Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (APEC). Um lugar pequeno, mas fundamental. O trabalho ali não é de avaliar culpas, mas de entender contextos. A psicóloga Luana [nome fictício] os atendeu, um a um, com escuta atenta. Ramon falou sobre a mãe idosa, o desemprego, as dívidas. A Bruno, coube o silêncio — mas mesmo ele foi ouvido. Jonas falou do filho pequeno, do tratamento psiquiátrico para depressão, do medo de perder tudo de vez.
Dessa escuta nasce um relatório psicossocial, que será entregue ao juiz ou juíza. Um documento que traz o que um auto de prisão em flagrante não mostra: a história, as condições de vida e saúde, os vínculos.
O momento seguinte acontece no parlatório, espaço que garante o direito à pessoa presa de conversar de forma reservada com o(a) advogado(a) ou defensor(a) público(a), que esclarece dúvidas e explica o funcionamento da sessão.

A audiência acontece logo depois. Na sala, o juiz pergunta: houve agressão? Conseguiu avisar alguém da família? Está em tratamento? Tem filhos? Onde mora? As perguntas são simples, mas o que está em jogo é enorme: a liberdade.
O Ministério Público está ali para fiscalizar a legalidade da prisão e avaliar os riscos à sociedade. A Defensoria Pública, para garantir que haja respeito aos direitos fundamentais. E o Judiciário, para conduzir esse rito como dita a lei.
A defensora pública Aline Solano Feitosa de Carvalho diz que a custódia é o momento em que o Estado olha nos olhos de quem, possivelmente, infringiu a lei – e decide com responsabilidade. “Nosso trabalho é garantir que o direito à dignidade humana não seja suspenso com a prisão”, afirma. O promotor de Justiça Saulo Moreira Neto complementa: “A atuação é técnica, mas sempre baseada no caso concreto, com o objetivo de proteger a sociedade sem ignorar os direitos individuais”.
Há quem, erroneamente, pense que, ao fim da audiência de custódia, tudo se resolve ali. Mas a verdade é que esse momento é apenas o primeiro passo de um caminho mais longo, e que, nessa etapa, não se determina culpa ou inocência.
O inquérito policial, iniciado com a prisão, é finalizado e enviado ao Ministério Público, que analisa as provas colhidas, escuta os relatos e pode — ou não — apresentar uma denúncia formal. Se a denúncia for apresentada e aceita pelo Poder Judiciário, nasce um processo judicial completo: com produção de provas, depoimentos, perícias, oitivas, contraditório e ampla defesa.

Esse trâmite pode durar semanas, meses, até anos — dependendo da complexidade do caso, do tipo de crime, da quantidade de envolvidos. E só ao final dessa jornada, depois de exauridas todas as etapas legais e recursos cabíveis, é que a Justiça chegará a uma sentença definitiva. A pessoa poderá ser condenada ou absolvida. E se for condenada, poderá cumprir a pena em regime fechado, semiaberto ou aberto — a depender da gravidade, dos antecedentes, de fatores agravantes ou atenuantes.
Ou seja: a audiência de custódia não é o fim da linha — é o início do processo. Ela garante que a prisão em flagrante seja analisada com rapidez, para evitar ilegalidades, abusos ou prisões indevidas. Mas ela não substitui o julgamento. A verdade processual só virá depois, com todos os ritos que a Constituição garante.
Após a audiência, quem é liberado volta ao APEC. Lá, não recebe apenas um papel, mas um norte. Vale-transporte, orientação jurídica, encaminhamentos. Há programas de saúde mental, educação, reinserção no mercado de trabalho, regularização de documentos, apoio à maternidade, acesso à moradia, atendimento a pessoas em situação de rua.
As Agências do Trabalhador funcionam como pontes para o recomeço. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) acolhe quem deseja concluir os estudos. Pessoas com deficiência e idosos podem acessar o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Quem enfrenta dependência química pode ser encaminhado para um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A gestante recebe informações sobre o pré-natal e é orientada a buscar atendimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Cada vida, uma rota possível.

Quando o sistema acolhe, orienta, encaminha para políticas públicas, busca o melhor caminho para que o erro não se repita – e, dessa forma, protege a todos. Presos abandonados voltam piores. Presos acompanhados com dignidade têm chance real de voltar melhores. É assim que se quebra o ciclo. É assim que se transforma.
Como explica a juíza titular da Vara, Adriana da Cruz Dantas: “A escuta feita na custódia direciona os primeiros passos. Depois, a Coordenadoria de Alternativas Penais continua esse trabalho, avaliando onde a pessoa mora, se deseja estudar, trabalhar, fazer tratamento ou retomar vínculos familiares. A ideia é que essas pessoas não sejam apenas soltas — mas acompanhadas, oportunizadas, resgatadas em sua humanidade”.
O vídeo Justiça nas primeiras horas revela, em imagens, o funcionamento da Vara de Custódia e a atuação de cada órgão do Sistema de Justiça durante a audiência. Confira:
Audiência de Custódia: Uma década de luta por justiça com respeito à dignidade humana
Da unidade pioneira à política estadual: A estrutura da audiência de custódia no Ceará











