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Audiência de Custódia: Uma década de luta por justiça com respeito à dignidade humana

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Por Luís Carlos Silva – Jornalista

 

“Você pode até dizer que eu tô por fora ou então que eu tô inventando, mas é você que ama o passado e que não vê, é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.

Os versos de Belchior, imortalizados na voz potente de uma das maiores cantoras da música brasileira, Elis Regina, revelam o conflito entre o apego aos costumes e a chegada de novas ideias. A música fala sobre como é difícil aceitar mudanças, afinal, elas carregam o desconforto do inédito.

Foi assim, guardadas as devidas proporções entre arte e realidade, que aconteceu com a proposta da audiência de custódia. Com um novo olhar sobre o Sistema Penal, ela surge em resposta a um questionamento incômodo, porém necessário: como exercer o poder punitivo do Estado sem ferir a dignidade humana?

Essa inquietação não surgiu por acaso, mas sim de um compromisso firmado décadas antes. Esse mecanismo, embora visto com desconfiança por algumas pessoas, que insistem em enxergá-lo como um obstáculo à punição ou uma brecha para a impunidade, não foi criado para absolver. Ele existe para garantir que a justiça seja feita com equilíbrio, respeitando a Constituição Federal de 1988, que coloca os direitos fundamentais no centro da atuação do Estado.

Em síntese, a audiência de custódia assegura que toda pessoa presa seja apresentada a uma autoridade judicial no prazo de 24 horas. Nesse momento, a juíza ou o juiz responsável avalia a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, considerando as circunstâncias do caso. Além disso, esse procedimento contribui diretamente para o combate à violação de direitos, ao permitir a identificação imediata de abusos de autoridade e maus-tratos.

Para a corregedora-geral do Judiciário cearense, desembargadora Marlúcia de Araújo Bezerra, “a audiência de custódia é uma ferramenta que busca assegurar o direito à liberdade, evitando prisões desnecessárias e combatendo possíveis abusos, como a tortura. Sua base legal se solidifica nos compromissos internacionais do Brasil e nas normas criadas para assegurar a efetividade desses direitos”.

A afirmação da magistrada remete a um aspecto essencial na origem da audiência de custódia, que não está apenas na legislação nacional, mas também nos acordos assumidos pelo Brasil no cenário internacional. O país é signatário de convenções que exigem a apresentação rápida da pessoa presa a uma autoridade judicial. Entre os principais tratados, estão o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1976) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1978), popularmente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica.

 

 

Além das diretrizes da chamada “Constituição Cidadã”, expressão utilizada pelo deputado Ulysses Guimarães, e das convenções políticas, tornou-se evidente a necessidade de criar uma regulamentação específica que estruturasse esse procedimento. Foi nesse contexto que, em 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n° 213, oficializando e estabelecendo orientações para realização das audiências de custódia em todo o território nacional.

A corregedora define a Resolução como um marco fundamental para implementação desse instrumento. “Ela transformou a audiência de custódia de uma teórica obrigação internacional em uma realidade processual concreta no Brasil, definindo regras claras, fortalecendo a proteção aos direitos humanos e estimulando uma mudança na cultura judicial em relação à prisão”, pontua.

Ainda de acordo com a desembargadora, a decisão do CNJ de desenvolver esse ato normativo “concedeu relevância ao tema, culminando na inclusão da custódia no Código de Processo Penal, pela Lei n.º 13.964/2019, conhecida como o Pacote Anticrime. Com essa alteração, a audiência passou a ter previsão expressa na legislação brasileira, reforçando sua obrigatoriedade e importância para o Sistema de Justiça criminal”.

 

 

Reconhecido historicamente como um Estado de vanguarda, o Ceará tem se destacado por antecipar debates e implementar práticas que mais tarde se transformam em referência. Assim aconteceu com a abolição da escravização, antes da Lei Áurea, e com as ações voltadas à audiência de custódia. É bem verdade que a “Terra da Luz” não foi a primeira região do país a implementar esse mecanismo, porém, foi pioneiro ao estabelecer uma estrutura exclusiva para essa matéria.

Esse avanço se concretizou por meio da Resolução nº 14/2015, quando o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) criou a Vara Única Privativa de Audiência de Custódia de Fortaleza, alterando a competência da 17ª Vara Criminal da Capital, que até então era responsável pela demanda. Inaugurada em 21 de agosto de 2015, a unidade iniciou suas atividades no Fórum Clóvis Beviláqua (FCB). Posteriormente, foi transferida para outro prédio da cidade, anexo à Delegacia de Capturas, onde permanece em funcionamento.

Sede atual da Vara Privativa de Audiências de Custódia está localizada no Centro de Fortaleza

 

A criação da Vara demandou uma série de esforços e contou com a parceria de órgãos importantes do Sistema de Justiça. O Poder Executivo, por meio das Secretarias de Justiça e Segurança Pública, foi decisivo no transporte dos custodiados, na garantia da segurança durante as audiências, entre outras ações. O Ministério Público do Estado (MPCE) e a Defensoria Pública, dentro de suas respectivas atribuições, também colaboraram nas discussões para a implementação desse instrumento e no devido respeito aos direitos fundamentais.

A unidade completa 10 anos de atuação no Estado. À frente da coordenação, a juíza Adriana da Cruz Dantas destaca os avanços conquistados. “O principal diz respeito à qualificação da audiência. Os normativos do CNJ, resoluções, as articulações que foram feitas com várias instituições. O acompanhamento para evitar reincidência. Nós tivemos projetos e parcerias muito importantes. O Município de Fortaleza, através da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, contribuiu com o fornecimento de insumos básicos de higiene e capacitação de todos que atuam na custódia em relação a públicos vulnerabilizados. E a gente está buscando alcançar outras melhorias, sempre junto ao TJCE”, afirma a magistrada que atua na Vara desde outubro de 2015.

 

Juíza coordenadora preside audiência de custódia, obrigatória para todas as modalidades de prisão

 

Entre os demais progressos está a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2023, que ampliou o alcance das audiências de custódia. A partir dessa mudança, tornou-se obrigatória a realização em todas as modalidades de prisão: em flagrante, preventiva, temporária, preventiva para fins de extradição, por descumprimento de medidas cautelares e definitivas para fins de execução penal. No Ceará, além da unidade localizada na Capital, outros sete Núcleos de Custódia (NCG) estão divididos nas cidades de Juazeiro do Norte, Iguatu, Quixadá, Caucaia, Sobral, Crateús e Maracanaú.

 

 

Apesar de ser um instrumento necessário, a proposta da audiência de custódia sofreu, e ainda sofre, em menor proporção, resistência de alguns grupos. Para além da compreensão equivocada sobre sua finalidade, havia também preocupações quanto a um possível aumento da carga de trabalho.

No Ceará, foram mulheres que lideraram esse processo, enfrentando o descrédito com coragem. Naquele período, a desembargadora Maria Iracema Martins do Vale ocupava a Presidência do TJCE. Também fizera parte a então desembargadora Francisca Adelineide Viana (in memoriam), que coordenou o Grupo de Trabalho criado à época para planejar a implantação da audiência de custódia no Estado. Essa equipe foi responsável por estudar a logística, definir a estrutura física, estabelecer o quadro de pessoal necessário e firmar parcerias com os demais órgãos públicos.

 

Integrantes do Grupo de Trabalho que planejou implantação da Vara, durante reunião em 2015

 

A desembargadora Marlúcia, que esteve como juíza na Vara de Custódia e participou ativamente dessa mudança, lembra com detalhes de um episódio que retrata os desafios enfrentados. “No primeiro dia de funcionamento da unidade, ocorreu um entrave na condução dos presos da carceragem do Fórum até as salas de audiência, por conta de uma indefinição da corporação policial. Como aquela situação demorava a se resolver, uma das magistradas que me auxiliavam, a hoje desembargadora aposentada Maria das Graças Almeida de Quental, tomou uma iniciativa. Ela desceu até a carceragem e fez pessoalmente a condução dos presos até a sala de audiências, sem algemas e desarmada, a não ser de sua imensa boa-vontade. Depois desse episódio, as audiências fluíram normalmente”, destaca.

 

 

Ao completar uma década de funcionamento, a Vara de Audiência de Custódia de Fortaleza consolida um legado reconhecido por aqueles que ajudaram a construir essa história. Para a juíza Adriana Dantas, é “a humanização na porta de entrada do sistema de Justiça. Cumprir o mandamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Não é o fato de você ter infringido uma norma penal que tira a dignidade, pode tirar a liberdade, a pessoa pode ter sua liberdade realmente cessada, mas a sua dignidade jamais. Essa deve permanecer sempre”.

 

Primeira audiência de custódia no Ceará foi realizada em 21 de agosto de 2015

 

O sentimento é compartilhado pela corregedora. “O legado é claramente percebido quando se observa a consolidação de um modelo que equilibra a necessidade de segurança pública com o respeito aos direitos humanos, tornando, com isto, todo o Sistema de Justiça mais eficiente e eficaz, na busca por uma sociedade mais civilizada e justa”, conclui.