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´O caso da menina Alanis, infelizmente, não é único´

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Opinião Pág. 02 17.01.2010
LÚCIO FLÁVIO GOMES DE LIMA
PSICÓLOGO, MESTRE EM PSICOLOGIA E PROFESSOR DA UNIFOR
Para o psicólogo Lúcio Flávio Gomes, casos de pedofilia existem há muito tempo, mas têm sido mais combatidos. O especialista alerta pais a estarem mais presentes na vida dos filhos e acredita que a indignação popular à morte da menina Alanis Maria, 5, tem a ver com a descrença em punição firme ao agressor
A pedofilia está mais presente em nossa sociedade?
Não sei se está mais presente; acho que está mais noticiada, mais publicizada e mais combatida. Há relatos desse tipo de caso de longa data. O caso da Alanis, infelizmente, não é único. É importante marcar que grande parte dos violentadores são pessoas próximas à criança. Grande parte desses casos não são publicizados por vergonha, por proteção a esse abusador, por qualquer motivo. No caso da Alanis, a situação em que ocorreu foi algo completamente inesperado: no pátio da igreja com a mãe. Ela tinha uma família aparentemente organizada – pai, mãe, avós. Acho que a repercussão ganhou dimensão porque era uma criança com uma estrutura familiar que dava proteção.
Como explicar a indignação popular tão grande a esse caso?
Primeiro, pelo ato. Normalmente, crimes contra crianças comovem muito. No caso da Alanis, pelo contexto, e pela possibilidade, muito corriqueira no país, dos acusados não sofrerem nenhuma sanção do Estado. Cada indivíduo, a partir da sua história de vida, vai pregar: “ele não vai ser punido pelo Estado, vou ter que puni-lo”. Quando tenho que puni-lo, vou para a porta da delegacia, para a porta da Superintendência (da Polícia Civil), apedrejo carro, grito palavras de ordem como “lincha, mata”. Outra explicação também é o comportamento agressivo. A nossa sociedade utiliza muito da punição – o fotossensor, a multa, a prisão, o grito. Isso é passado tanto em questões sociais, no que se refere ao Estado, mas também numa perspectiva individual: “quando uma pessoa me agride, eu revido”. O que aconteceu: aquele indivíduo cometeu falha grave – estuprou e matou uma criança. Ele me agrediu; eu tenho uma filha, uma sobrinha. O que vou fazer? Vou agredi-lo também. Infelizmente, aprendemos esse comportamento, que é o revide, o comportar-se agressivamente.
O fato de as pessoas defenderem métodos cruéis de castigo ao agressor de Alanis indica barbarização da sociedade?
Existem estudiosos que colocam a barbárie como uma coisa do nosso tempo, mas, se na minha história de vida eu controlo o comportamento das pessoas que estão à minha volta por punição, por tortura, vou querer fazer a mesma coisa com outra pessoa. Tem vários exemplos de situações que você fica: “Poxa vida! Como isso acontece numa sociedade como a nossa?”. Tão desenvolvida tecnicamente, mas ainda com atos de barbárie mesmo: enfiar uma chave de fenda (em alguém) ou arrastar uma criança durante vários quilômetros, como no Rio de Janeiro (caso do garoto João Hélio, em 2007). A nossa sociedade tem que mudar. Brigar com as pessoas, gritar, agredir não resolve o problema. Porque do jeito que você revidar, a pessoa também vai querer revidar. Por exemplo, bater em crianças é algo que não deveria ser utilizado. A gente tem métodos mais interessantes e eficazes do que bater. Quando digo isso, meus alunos dizem: “- Isso não existe! Como vou educar sem bater?”. Aí já está a marca disso que você está colocando. As pessoas veem o agressor, o estuprador e querem arrancar as unhas, matar, arrancar determinados órgãos… Barbárie? Não sei. Acho que é muito mais fácil bater numa pessoa para ela mudar o comportamento que dizer: ” – Você fez algo que não me agradou. Vamos conversar e tentar nos acertar?”.
Como analisar o perfil de Antônio Carlos dos Santos Xavier, acusado de violentar Alanis?
Uma hipótese genética, seria só uma conjectura. O que a gente pode ter é o seguinte: um rapaz que aprendeu a se excitar na presença de crianças. Isso vai acontecendo ao longo da história de vida dele. Em determinados eventos que a gente chama de ´condicionamento respondente´ e ´condicionamento operante´. O comportamento vai sendo reforçado, aumentado de frequên-cia. Vai chegar um momento em que ele não vai mais estar tão excitado e passa para o próximo estágio. Vai tocar, beijar e partir para o ato sexual. Quanto à fazer de novo, essa pessoa deveria, além do cerceamento de sua liberdade, ter acompanhamento psicológico. Do mesmo jeito que o Estado é obrigado a dar condições de um ex-apenado entrar no mercado de trabalho, deveria dar condição dele ser acompanhado por um psicólogo. Esse rapaz, com a recorrência (nesse tipo de crime), mostra algum transtorno psicológico, algum comportamento que não se adequa às normas que a sociedade estruturou. O Estado não poderia, simplesmente por progressão de pena, deixar esse rapaz em liberdade, porque ele iria entrar em contato com o estímulo que o excita e, dificilmente, iria se controlar.
Ele tem condições de conviver em sociedade?
Sendo acompanhado por psicólogos, recebendo tratamento adequado, certamente. Qualquer comportamento é modificável, com maior ou menor dificuldade. O que não dá é simplesmente soltar esse rapaz no meio da sociedade.
Nesse tipo de caso, uma das explicações é o agressor ter sido abusado quando criança. Isso é uma regra?
Existem alguns casos, mas não é regra. Existem abusadores que não sofreram (abuso) e existem pessoas que sofreram (violência) e não são abusadores. O que há sim é que pessoas abusadas vão sofrer algum problema na idade adulta. Não dá para passar por uma situação como essa de maneira incólume.
Que tipo de prejuízo pode ter uma criança que sofre uma violência como essa e sobrevive?
Os mais variados possíveis. Não há regras, mas, por exemplo, pode ter dificuldade de relacionamento sexual. Ela pode passar a sentir ansiedade cada vez que estiver numa situação semelhante àquela. No caso do homem, ter dificuldade de ereção. No caso da mulher, dificuldade de lubrificação no canal vaginal, que vai causar, no ato da penetração, dor. Aí ela vai começar a fugir dessas situações. Ela pode ter transtornos de ansiedade, dificuldade de sono, dificuldade nos relacionamentos com pessoas de sexo oposto – toda vez que vir um homem ela vai ter medo -, dificuldade de estruturar relacionamentos de amizade.
Como os pais podem ajudar a criança a superar esse trauma?
Procurando acompanhamento psicológico. É o psicólogo que vai poder, da maneira adequada e mais técnica, auxiliar a família nesse momento. Às vezes, a família, no desejo de proteção, esconde, pede para a criança esquecer o assunto. Em algumas situações, é necessária essa conversa, para que a criança possa reelaborar isso da maneira mais adequada.
Como as famílias podem identificar crianças que estejam sofrendo violência sexual?
Crianças, por exemplo, que são muito recatadas, quietas, sentem muito medo, choram por qualquer coisa, às vezes não querem ficar com determinadas pessoas, sentem algum pudor no que se refere às partes genitais, isso pode ser indício de que a criança esteja sendo vítima de alguma violência sexual. A gente tem que ficar muito atento à rotina da criança. O que ela fala, sempre acreditar na criança, investigar, pelo menos. Proteger não é guardar dentro de casa, grande parte dos abusadores estão em casa. Proteger é dar carinho, cuidado, atenção. Infelizmente, por questões da nossa da nossa sociedade, (os pais) passam o dia rodando atrás de dinheiro e deixam de lado um pouco a vida dos filhos.
Os pais devem vigiar os filhos o tempo todo?
Os fatos mostram que sim. Quando você tem um filho assume uma responsabilidade quase ad infinitum. Ter um filho não é ter um brinquedo para exibir para os amigos, é assumir responsabilidade com a vida de outra pessoa. Se vivemos em uma sociedade em que a violência urbana pode ser encontrada em todo lugar, cuide de seu filho.
FIQUE POR DENTRO
Quem é Lúcio
Natural de Pinheiro, a 86km de São Luís, no Maranhão, Lúcio Flávio Gomes de Lima decidiu cursar Psicologia no Ensino Médio. “Sempre quis entender por que as pessoas fazem aquilo que fazem”, explica. A vocação ficou mais forte quando teve um professor de Português também psicólogo, chamado Valmir Andrade. “Ele dizia o que as pessoas pensavam e acertava. Eu (dizia): ´- Puxa Vida! Agora eu quero mesmo aquilo´”. Desde então, concluiu graduação e mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2003 e 2006, respectivamente. Passou quatro anos (três como estagiário e um como profissional) no S.O.S Criança, que atendia a casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Atualmente, atende adolescentes e adultos, é professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e integra o Laboratório de Educação, Comunicação e Sociabilidade (Labecos) da Unifor.
ÍCARO JOATHAN
REPÓRTER