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Novos horizontes da Justiça Restaurativa: Guardiões dos círculos restaurativos contam vivências e aprendizados

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A crença na restauração de vida do ser humano é latente nos guardiões dos círculos restaurativos. Eles acreditam no poder da fala e da escuta, constroem e reconstroem histórias e pensamentos, induzem a empatia do próximo, acreditam na cura. O papel dos guardiões ou facilitadores da Justiça Restaurativa é tema da segunda reportagem da série “Novos horizontes da Justiça Restaurativa”, produzida pela Assessoria de Comunicação Social do TJCE 

Por Brenda Alvino

“Ele guarda e acompanha o círculo. Ele saúda e despede os participantes. Ele não é a autoridade, está no mesmo patamar de todos os que estão sentados, é o cuidador.” Essa foi a definição dada por Lilian Gondim, facilitadora e guardiã de círculos restaurativos no Núcleo de Justiça Restaurativa (Nujur) do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) desde 2019.

“Sou formada em Direito e mediadora desde 2010. Sempre fui adepta ao diálogo e a mediação de conflitos me chamou bastante atenção pelos valores humanos. Sou advogada, mas não queria trabalhar na seara do litígio, queria apaziguar, normalizar a situação. Em 2018, fiz um curso de círculos de construção de paz e me tornei facilitadora e instrutora. Em setembro de 2019, conheci e fui acolhida pelo Nujur, que me trouxe uma visão diferenciada pelos valores que são trabalhados de forma mais aprofundada, com o tempo maior de fala e de escuta”, afirma Lilian Gondim, que também atuou em 2012 no então recém-criado Centro Judiciário de Solução de Conflitos no Fórum Clóvis Beviláqua, preparando outros mediadores.

Uma das características presentes nos encontros é o acolhimento. O poder da fala e da escuta faz com que o diálogo flua de maneira igualitária e construtiva. Lilian explica como funciona. “O círculo é um momento preparado, respeitosamente avisado às pessoas. Marcamos dia e horário. Cada momento pode durar 1h, 1h30 ou até 2h. Se vamos abordar o tema ‘abuso de autoridade’, vamos falar dele de maneira aberta para que as pessoas possam entender a visão do outro. Fazemos uma cerimônia de abertura, colocamos uma manta no chão, uma peça no centro do círculo, remontando aos primórdios, onde as pessoas contavam as suas experiências de vida, fatos, sabedorias. Todos precisam estar em círculo, de forma igualitária. Quem está com o objeto em mãos tem o poder da fala, quem não tem, tem outro poder, o poder da escuta.”

Para ela, os encontros são aprendizados mútuos, experiências que geram transformação no guardião do círculo e nos participantes. “Eu aprendo muito nos encontros. Me marcou muito o segundo círculo restaurativo que fiz no Nujur. Um adolescente que foi levado pelos amigos de má influência. Os pais trabalhavam e ele foi criado pela avó. Quando ele foi levado para a delegacia, viu a família o apoiando e sentiu-se envergonhado. Ele quis dizer pra família que não era criminoso, que foi induzido a isso. Trabalhamos com as vítimas indiretas, a família e a namorada dele que sofreram com o ocorrido. Foi tão incrível que, no final do período, ele voltou pra sala de aula e deu uma palestra sobre família e amizades falsas na escola. Fiquei feliz porque acompanhei o pré, durante e o pós-círculo”, lembra.

Quando perguntada sobre a sensação de ver a mudança de pensamento e de fala dos participantes nas conversas realizadas nos círculos, Lilian disse sentir-se imensamente grata. “Eu sinto gratidão porque o guardião, o facilitador, tem o trabalho de facilitar, se a pessoa não se entendia, não se via, não se compreendia e você facilitou para que ela pudesse, por si só, se ver e ouvir, perceber a mudança de si próprio, isso é maravilhoso, porque o caminho de facilitar é esse.”

O mesmo sentimento é compartilhado pela facilitadora Elizângela Gomes, que também é líder técnica do Órgão Central de Macrogestão e Coordenação de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Ceará. Ela trabalha com práticas com enfoque restaurativo há mais de uma década e é uma das idealizadoras do Núcleo de Atendimento ao Homem Autor de Violência Doméstica e Familiar (Nuah), que funciona na Vara de Penas e Medidas Alternativas da Comarca de Fortaleza. “Trabalhar com Justiça Restaurativa é muito gratificante e importante porque pode mudar toda uma dinâmica de vida, de famílias, de comunidades, porque dentro dos círculos são desenvolvidas habilidades sociais das pessoas, como desenvolver empatia ao outro, entender o dano que causou ao outro, como se autoresponsabilizar. É uma experiência de conexão, sem focar no problema, mas sim na cura. Isso quem impulsiona é o facilitador”, conta.

Para ser um facilitador, não há pré-requisitos em relação à formação acadêmica, mas é necessário passar por capacitação específica e ser uma pessoa aberta ao diálogo, à escuta e aos processos participativos e democráticos. É o que explica Renato Pedrosa, presidente nacional do Instituto Terre des Hommes , organização da sociedade civil que atua na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, com relevante trabalho na disseminação da Justiça Restaurativa e formação de facilitadores.

“Cabe ao facilitador, primeiro, conversar individualmente com as pessoas que vão participar do círculo, preparando para o encontro, e também verificar se há segurança para que o círculo aconteça, buscando identificar necessidades, sentimentos. Depois, durante o círculo, é ele que vai conduzir todo o processo, com orientações bem definidas, para facilitar o diálogo, os acordos e garantir a democratização da fala, um ambiente respeitoso para todos, cuidando para que outros direitos não sejam violados. Depois desse encontro, vai registrar o que foi acordado para a reparação daquele dano ou crime. Esse plano de ação é encaminhado para a Vara responsável e, em outro momento, o facilitador vai reencontrar com as partes que fizeram parte do círculo, para monitorar se o que foi acordado está sendo cumprido, para estimular ou, se alguma ação não foi cumprida, entender o que houve, eventualmente repactuar”, explica.

Por lidar com situações complexas e temas sensíveis, o facilitador precisa passar por formação e atualização constantes. “Eu digo que o facilitador é um eterno aprendiz do processo, então ele se autoavalia, passa por um processo de supervisões frequentes, é aquela pessoa aberta a estimular que as pessoas dialoguem, se acertem, e vai possibilitar todo um aparato de recursos para que as pessoas tenham um encontro confortável, seguro e democrático”, complementa.

De forma pioneira no país, o trabalho do facilitador passou a ser remunerado, na atual Gestão do Tribunal de Justiça. “Dentre as diversas ações desenvolvidas pelo TJCE, destaca-se a regulamentação do pagamento dos facilitadores em Justiça Restaurativa como a principal deliberação do Órgão Central de Macrogestão, enfatizando que se trata de iniciativa pioneira no âmbito dos tribunais de Justiça do país. Essa normatização amplia e efetiva o trabalho desempenhado pelo facilitador, zelando pelo cumprimento dos aspectos legais do procedimento. Além do mais, auxilia na interlocução com instituições parceiras e demais tribunais pelo Brasil”, disse a desembargadora Andréa Delfino, supervisora do Órgão Central de Macrogestão e Coordenação de Justiça Restaurativa.

Para a facilitadora Lilian Gondim, a remuneração é bem-vinda, mas o trabalho sempre será enriquecedor, independente do retorno financeiro. “Eu sempre fui voluntária, mas quando se tem uma expectativa de trabalho remunerado é maravilhoso. O valor não te valoriza, não tem valor nenhum que pague o que eu aprendi, não tem retorno que vá mensurar em cifrão o que aprendi. O valor não é o que te faz reconhecer que aquele trabalho merece, mas acho honesto quando a pessoa ganha pelo que conquistou. Porém, voluntário ou não, o trabalho é enriquecedor e nunca perderá o seu valor”, afirma.

SAIBA MAIS

Nas próximas matérias da série “Novos Horizontes da Justiça Restaurativa”, conheça o recém-iniciado projeto Custódia Restaurativa e acompanhe histórias de transformação de autores de violência doméstica que participam de círculos de construção de paz, uma parceria da Justiça cearense com a Pastoral Carcerária.

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