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Debates e ideias

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Opinião Pág. 03 25.10.2009
Prova diabólica Debates e ideias
Imagine-se um servidor público processado pela prática de um fato que se configura, ao mesmo tempo, como ilícito penal (crime em tese) e como ilícito administrativo (infração disciplinar em tese), correndo em paralelo ambos os feitos sancionatórios; segundo a compreensão que apregoa a “independência das instâncias”, nada haveria a anotar quanto à simultaneidade dos procedimentos, de vez que distintos, diferentes os objetivos e inconfundíveis as sanções. Mesmo se aceitando essa lógica procedimental, não há como ocultar que os procedimentos poderiam chegar a resultados diversos e mesmo opostos, podendo ocorrer de o Servidor ser inocentado em um e condenado no outro, como aliás ocorre com não rara frequência.
Imagine-se agora que a esse mesmo servidor público foi aplicada a sanção de demissão, ao fim do procedimento disciplinar, pela prática da dita infração, mas veio ele a ser absolvido “por falta de provas” no processo criminal; dir-se-á, com base na “independência das instâncias”, que será nenhuma a repercussão dessa absolvição na esfera administrativa, pelo que a sanção de demissão, no caso, deverá prevalecer e ser mantida, pois somente haveria repercussão na instância administrativa “se a absolvição tivesse se dado pela demonstração da inocência do acusado, pela comprovação de que o fato não ocorreu ou de que o imputado não contribuiu para a sua prática” (art. 386 do CPP).
Não há dúvida alguma de que, nesses casos (inexistência do fato ou de sua autoria), a absolvição criminal elimina a sancionabilidade administrativa e o servidor público deve ser reintegrado no seu cargo, com o ressarcimento de todos os seus direitos; mas, idêntica conclusão não se costuma afirmar quando a absolvição ocorre “por falta de provas”, havendo mesmo inúmeras lições da jurisprudência dos Tribunais do País com essa orientação, de que são exemplos, no STJ, os julgamentos do Resp. 138.801/ES, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 13.10.1998 e do Resp. 409.890/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 19.12.2002.
Mas, na verdade, essa assertiva – que por força da sua repetição ao longo de décadas adquiriu foros de dogma jurídico – começa a apresentar a sua fragilidade conceitual, em decorrência das evoluções mais recentes da Ciência do Processo, atentas à dignidade da pessoa humana, à preservação da presunção de inocência e, ainda, ao indispensável dever do órgão da acusação de “provar a imputação”, sem o que o acusado deve ser tido como “inocente”.
Com efeito, se para a “repercussão benéfica” ao servidor público no âmbito administrativo da sua absolvição criminal se exigir que ele produza a prova da sua inocência, de que o fato a ele imputado não ocorreu ou que ele não contribuiu para a sua prática, estar-se-á dispensando o órgão da acusação de provar a imputação e, mais ainda, carregando ao acusado a “prova negativa”, tão adequadamente chamada de “prova diabólica”, cujo desempenho é de dificuldade tão gigantesca que se pode mesmo dizer que se trata de “prova impossível”.
É comum entre os tratadistas do Processo Civil a afirmação de que as provas se destinam à demonstração “de fatos” e não à revelação de “não fatos”, que seriam os eventos não ocorridos, os acontecimentos que não se deram ou as situações objetivas que não se realizaram, sendo auto-evidente a contradição interna que essas locuções acomodam.
A tendência em sentido contrário que agora se detecta prestigia as aludidas “conquistas” científicas do Processo, liberando o indivíduo de encargos processuais que pertencem (e devem mesmo pertencer) ao órgão da acusação, permitindo que a pessoa imputada aufira plenamente “todos os efeitos” da ausência de condenação, quando a imputação não resultar comprovada, seja por deficiência operacional do acusador, seja por sua incapacidade de recolher ou produzir a prova necessária para o juízo condenatório ou por qualquer outra causa jurídica que importe na absolvição do réu; tal raciocínio não se aplica, porém, aos casos de prescrição do crime, por exemplo, em que não se examina a conduta infracional penal, mas tão somente a fluência irreversível do tempo, a acarretar a extinção do poder punitivo estatal.
Há, ainda, por óbvio, que ser ressalvada a hipótese da Súmula 18 do colendo STF, segundo a qual “pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público”.
Mas essa “nova tendência” ainda está apenas se anunciando nos “horizontes da jurisprudência”, não havendo – por enquanto – o registro de casos notáveis já decididos, em que essa orientação seja adotada sem reserva; mas o êxito dessa diretriz parece assegurado pela “vocação do nosso tempo” para aperfeiçoar as técnicas jusprocessuais de proteção dos direitos subjetivos, das liberdades e das garantias.
NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO
Ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor licenciado de Processo Civil da Faculdade de Direito da UFC