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População busca judicialmente direito à saúde

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13.09.2010 cidade
Carinho demonstrado pelos pais é o que não falta ao pequeno Kalebe da Silva, 8 anos de idade, que toma alimentação especial vinda da Alemanha fornecida pela Sesa
Isabel Maria Salustiano Arruda Pôrto
Medicamentos ou procedimentos não contemplados pelo SUS, são os alvos principais da Judicialização
Os tempos mudam e com eles, hábitos, posições e nível de conscientização da população. A crise da saúde no País é fato. Faltam recursos e políticas públicas. Os brasileiros não estão mais esperando sentados providências; hoje eles recorrem à Justiça para fazer valer o que lhes garante a Constituição: o direito à saúde.
O direito à saúde, aí compreendida a assistência farmacêutica, exige plena eficácia. A omissão ou ineficácia do Estado na prestação dessa assistência médico-farmacêutica deu oportunidade ao surgimento da judicialização, que representa a provocação e a atuação do Poder Judiciário em favor da efetivação dessa assistência. Sua crescente escalada no Brasil tomou ares de fenômeno e hoje está dividida entre uma saída necessária para garantir o direito fundamental à saúde e a de funcionar como um mecanismo capaz de causar transtorno ao planejamento das políticas públicas. A dicotomia continua. De um lado tem-se na participação do Judiciário a garantia da fiscalização de eventuais desmandos por parte do Estado na atenção à saúde. Mas, de outro, o excesso de ordens judiciais pode inviabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos básicos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Direito social
Pela falta de uma política específica, não só para o atendimento de pacientes com doenças raras como também o de executar procedimentos médicos, que significam aportes financeiros elevados na efetuação de seus pagamentos, as decisões judiciais vêm obrigando os órgãos governamentais a arcar com as consequências que já comprometem o sistema de saúde no País. Com o advento da Constituição Federal de 1988, de conformidade com seu artigo Nº 196, a saúde passou a ser direito fundamental social, ficando consignado que este direito é de todos, indistintamente, constituindo-se em dever do Estado assegurar o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, os quais se integram a uma rede regionalizada e hierarquizada, formando-se num sistema único (SUS). Apesar do Estado fazer valer o que determina a Constituição, garantindo o acesso aos serviços de saúde, a demanda pelos mesmos é maior do que pode suportar, gerando insatisfações tanto individuais quanto coletivas, que acabam por desaguar no Poder Judiciário, a exemplo das ações oriundas daqueles que necessitam de alguns medicamentos ou de procedimentos não contemplados pelo SUS.
Começo
A judicialização da saúde teve início a partir da busca pelos medicamentos antirretrovirais, para o combate ao avanço do vírus HIV. Ela se popularizou por meio de liminares que obrigavam o Estado a fornecer gratuitamente remédios de alto custo que não constassem da lista do SUS.
Este assunto ganha, nos dias atuais, conotação na comunidade jurídica, na comunidade médico-farmacêutica, na administração e na imprensa, isso porque a população tem se valido do Poder Judiciário para executar essa prestação, ou seja, o Judiciário tem sido provocado a coagir a Administração a cumprir o dever que a Lei lhe impõe, garantindo, assim, o direito à saúde. É tão grande a quantidade de ações judiciais impetradas com esse intuito, que o fato já vem sendo chamado de “Judicialização da Assistência Farmacêutica”, “Judicialização da Saúde” ou mesmo “Fenômeno da Judicialização dos Medicamentos”.
No Ceará
No Ceará, as ações também predominam e invadem as instâncias jurídicas, Tribunal de Justiça (TJCE), Ministério Público Estadual (MPE) e Ministério Público da Saúde. Só este ano, em torno de 1.200 processos administrativos e judiciais de pacientes requerendo medicamentos que o SUS não disponibiliza devido ao valor, estão em trâmite. O SUS tem uma tabela definida pelo Ministério da Saúde com a relação dos medicamentos de alto custo para diferentes doenças genéticas, raras.
Fenilcetonúria
Há vários dias, em Fortaleza, crianças portadoras de fenilcetonúria, doença genética caracterizada pela ausência da enzima fenilalanina hidroxilase, responsável pela digestão do aminoácido fenilalanina, presente na proteína, não recebem o leite PKU Secunda, fundamental para a alimentação delas. O PKU Secunda é o único alimento para crianças, de até cinco meses, afetadas pela doença.
O leite é distribuído no Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS), com fornecimento da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa) e não é encontrado para venda. Além disso, uma lata do alimento, que vem da Alemanha, custa aproximadamente R$ 300,00.
O garoto Kalebe da Silva, 8 anos, mora em Itapipoca, mas vem com frequência a Fortaleza para receber o leite. O pai de Kalebe, Joaquim Luís da Silva Júnior, que é operador de máquinas, afirma que, nos últimos três anos, está ocorrendo atrasos na distribuição do produto e que este ano já é a segunda vez que falta. De acordo com a assessoria de imprensa da Sesa, a distribuição do leite foi interrompida em virtude de problemas no pregão eletrônico, modalidade licitatória que seleciona a empresa que fará o fornecimento do produto.
Origem
A maioria das doenças raras ou especiais são de origem genética (cerca de 80%) e, no Ceará, uma Organização Não Governamental (ONG), representada pela Associação Cearense de Profissionais atuantes em Doenças Genéticas (ACDG), presta assistência médico, psicológica, odontológica, farmacêutica, nutricionista, fonoaudióloga e jurídica aos pacientes portadores das doenças raras. A ACDG catalogou a existência de 794 portadores de síndromes genéticas no Estado, dos quais 275 estão cadastrados na associação.
AÇÕES JUDICIAIS
Gasto com cumprimento da Lei, perto dos R$ 500 mil
O Ceará gasta R$ 20 milhões, por ano, na compra de medicamentos de alto custo, oriundos da demanda do judiciário e que não compõem a tabela do SUS. Esse dinheiro gasto com mais de 500 processos/ano, representa mais da metade do que é gasto com recursos do Tesouro para garantir a assistência farmacêutica de toda a população cearense, com medicamentos da assistência especializada e contrapartida para a farmácia básica. A Sesa gasta ainda R$ 135 milhões, por ano, na aquisição dos medicamentos de alto custo. Desse total, 60% dos recursos são do Ministério da Saúde e 40% do Tesouro do Estado.
Despesas
Decorrentes da judicialização, há processos que chegam a quase meio milhão de reais como é o caso a seguir. Para garantir durante quatro meses, 64 frascos do medicamento Elaprase aos pacientes Alan Andrade Peixoto e Carlos Henrique de Lima, portadores de mucopolissacaridose e que ingressaram juntos na Justiça, a Sesa está desembolsando R$ 443 mil. O medicamento é importado. No prazo de um mês deve ser finalizado processo de compra e entregue às famílias dos pacientes.
Além de Alan e Carlos, a previsão de que receberão medicamentos no prazo de um mês, através de três outros processos judiciais: Hugo Tavares Sombra e Ana Beatriz Menezes Benevides, 96 frascos de Neglazyme, no valor de R$ 300 mil, os irmãos Jean e Jeovani da Silva, 32 frascos de Elaprase, ao custo de R$223 mil e ainda os irmãos Claudiane, Claudiano e Carlos Henrique de Lima.
“No Ceará há R$ 12 milhões para atender 7 milhões de usuários da atenção básica e R$ 30 milhões para serem gastos com 250 pacientes que usam medicamento de alto custo. O Estado está acuado pela judicialização”, diz Einstein Nascimento, supervisor de medicamentos de alto custo, da Sesa.
ADALMIR PONTE
REPÓRTER
ENTREVISTA
ISABEL MARIA SALUSTIANO ARRUDA PÔRTO*
Judicialização, um remédio ou um mal necessário?
O papel do Poder Público, no Estado Democrático de Direito, é o de assegurar à coletividade direitos e garantias fundamentais, adotando-se como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Dessa forma, acredito que o fenômeno da judicialização decorre da violação desses direitos, bem como de vários fatores que contribuem para esse panorama, tais como: a conscientização da população sobre seus direitos, o maior acesso da população ao Poder Judiciário, com a crescente atuação dos órgãos e entidades (Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia, Associações, etc); a socialização da informação, através da internet e outros meios de comunicação, permitindo ao paciente ou familiar procurar obter o seu direito; a evolução global e avançada do conhecimento técnico e científico na área farmacêutica; a não incorporação, por parte do Poder Público, de novos medicamentos ao sistema de saúde; etc.
O “Fenômeno ” é a única saída para se fazer valer o direito do cidadão?
Não, a judicialização nem sempre é necessária, pois existem outros mecanismos, tais como: realização de acordos em audiências nos processos administrativos, pactuação entre os entes públicos (União, Estados, municípios) para dispensação de determinado (s) fármaco (s), incorporação de novas drogas nas listas oficiais do SUS, em nível federal, estadual e municipal, bem como a solicitação administrativa do medicamento à própria Secretaria de Saúde respectiva, tendo esta a obrigação de fornecer o medicamento para o qual recebe o financiamento específico.
O que fazer para evitar que a judicialização desequilibre as contas públicas e?
Não podemos esquecer da Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, segundo a qual a União, Estados e Municípios estão obrigados a empregar percentuais mínimos na saúde, posto que este (saúde) é um direito básico e essencial assegurado ao ser humano, motivo pelo qual merece prioridade. Há ainda que se considerar o fato de que, para a implementação desse direito fundamental, pode a decisão judicial determinar remanejamento dos recursos públicos de setores não prioritários (verbas destinadas, por exemplo, à Publicidade) para as questões urgentes e inadiáveis de saúde, de forma a eliminar a ocorrência de desequilíbrio das contas.
Qual a saída para conter a demanda desenfreada de ações judiciais?
Não existe demanda desenfreada, e sim omissão do Poder Público em prestar assistência em saúde a quem dela necessita. Como saída para conter esta demanda considero que uma ampliação do acesso da população aos medicamentos de alto custo seria substancial (incorporação de medicamentos nas listas oficiais), posto que são inacessíveis à grande massa, num país repleto de desigualdades sociais como o nosso.
*Promotora de Justiça de Defesa da Saúde Pública
A opinião do especialista
Faltam políticas públicas
Tem se tornado cada vez mais complexa a relação que no cotidiano se estabelece entre o cidadão, o Estado e o sistema de saúde no âmbito público e privado no Brasil. A Carta Magna brasileira de 1988 possibilitou constitucionalmente espaços de participação do cidadão na formulação das políticas públicas e instrumentos de controle e fiscalização dessas políticas. Assim sendo, o cidadão da sociedade globalizada é crescentemente conscientizado quanto aos seus direitos e deveres como cidadão, usuário de serviços públicos ou cidadão consumidor de serviços privados. Esta é uma realidade presente em todos os segmentos das políticas públicas de Estado.
O objetivo deste ensaio é discutir a Política de Saúde na perspectiva da sua materialidade para o cidadão, usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) e o cidadão consumidor dos serviços privados de saúde, uma vez que todos estão albergados no que preceitua o art. 196 da CF/88: “A saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de riscos de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
Com base no princípio da universalidade, todo o cidadão tem direito material à assistência pública de saúde, sendo, por consequência, dever do Estado garanti-la.
A complexidade dos métodos da medicina moderna traz para o centro da discussão ônus tecnológico necessário à elucidação diagnóstica. Isto implica em cifras cada vez mais vultosas para a medicina diagnóstica que, em última instância, tem que ser arcada pelo cidadão beneficiário do tratamento médico. No entanto, quem paga essa conta? Como ceifar uma vida que depende de tratamento de alto custo financeiro? Como discriminar cidadão, se a Política Pública de Saúde garante a universalidade para usufruto dos bens de consumo da saúde pública? Esses são questionamentos recorrentes nos órgãos de controle externo do País que desembocam no Poder Judiciário.
Na contramão dessa questão está o Estado que garante constitucionalmente o direito à saúde de modo equânime e, no entanto, tem que estabelecer critérios e regulação orçamentária para a alocação do erário público. De fato, essa é uma discussão calorosa permeada por vários ângulos de análise: financiamento público, justiça, política, Direito e por que não afirmar, uma perspectiva ético-filosófica do homem na sua representação psicossocial.
Em meio a esse quadro, estão os profissionais da saúde, pública ou privada, que se deparam no dia a dia do trabalho com situações nas quais necessitam do conhecimento legal acerca da responsabilidade profissional frente à conduta terapêutica do paciente, bem como os profissionais da área sócio-jurídica que precisam discernir tecnicamente o que de fato é legítimo para atingir o parâmetro da legalidade.
A propósito desta temática o Instituto Episteme, que presta assessoria nas áreas de saúde e educação, está com inscrições abertas para o Curso de Capacitação Multiprofissional em Direito e Saúde que deverão ser encerradas no dia 24 deste mês.
ROSA ÂNGELA DE BRITO FALCÃO – MS. em Políticas P. – UFC