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Omissão que induz ao crime

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27.04.2009 Cidade
A falta de políticas públicas muitas vezes leva o cidadão a cometer infrações como deixar criança sozinha em casa
A diarista Maria de Jesus (nome fictício) vive entre a cruz e espada: precisa trabalhar para sustentar quatro filhos menores ? entre dez e um ano de idade ? e não tem com quem deixar as crianças enquanto está fora. Já tentou de tudo, desde creche para inscrever pelo menos dois deles à escola integral para os outros. Contratar o serviço de alguém, nem pensar, o orçamento mal dá para comprar a alimentação e pagar o aluguel de R$ 100,00, numa casa de dois cômodos, no Lagamar.
Sem opção, age igual a maioria das mulheres chefes de família, pobres e com subemprego: é obrigada a deixar os filhos em casa sozinhos sob os cuidados da criança mais velha. Maria não tem idéia, mas comete o crime de abandono de incapaz e pode cumprir pena de seis meses a três anos de detenção, além de correr o risco de perder a guarda dos filhos. No seu caso, de miséria quase absoluta, sem o benefício de políticas públicas que garantam os direitos básicos do ser humano, a omissão do poder público na oferta de creches a induziu ao crime. Situações como esta são mais comuns do que se pode imaginar.
Em Fortaleza, os seis Conselhos Tutelares recebem, em média, 45 denúncias mensais sobre a questão. E os números tendem a crescer com o fechamento de 49 das 87 creches que pertenciam ao Estado e agora estão sob a gerência do município. Apenas 38 assinarão convênio com a Prefeitura.
A presidente do Centro de Articulação e Apoio às Creches, Artanilse da Silva, não esconde a preocupação. ?A questão é grave. Mesmo com a reabertura dessas unidades, a demanda por vaga é muito grande. Existem creches cujo convênio contempla 60 crianças e já têm inscritas 88. Ou seja, 28 delas ficarão sem ter onde ficar e as mães com um dilema?, afirma.
Outro fator que contribui para que grande parcela de pais tenham que deixar os filhos em casa enquanto vai trabalhar é o bloqueio do Bolsa Família. ?Sem poder comprovar que a criança está na creche ou escola, primeira condição do programa, muita gente perdeu o benefício e está com a mão da cabeça?, relata.
Para a psicóloga e psicodramatista Lidiane Araújo, a questão não pode ser vista apenas como caso jurídico e sim como problema social gravíssimo. ?Vai além do crime de abandono. A mãe, nesse caso, depois de buscar alternativa, não pode ser simplesmente enquadrada com um processo nas costas?. Diz que a sociedade precisa pressionar o poder público na garantia de políticas públicas para essa camada da população. ?Sem falar nos prejuízos emocionais para a criança?.
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA
Núcleo recebe denúncias diariamente
O Núcleo de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes, ligado à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Ceará (STDS), avalia como abandono de incapaz os casos de negligência familiar e não são raros as denúncias que chegam diariamente na unidade. Entre janeiro e março deste ano, foram 144 registros. Se forem incluídos os casos de violência psicóloga ? deixar o filho preso em casa e sem a presença de uma adulto também está tipificado nesses casos ? são mais 19 denúncias somente em 2009. Os números são crescentes: em janeiro foram 41 registros; e, fevereiro, 50, e em março, 53.
A gerente do Núcleo, Débora Freitas, entende que, apesar das muitas ocorrências, principalmente, em bairros da periferia, a abordagem não leva, em princípio, como caso de crime ? artigo 133 do Código Penal Brasileiro. ?Levamos em consideração a atitude dos pais ou responsáveis, nesse caso, quais os fatores que levaram a tomar essa decisão?, explica.
A lei, no entanto, é aplicada em casos de abandono como os muitos divulgados pela Imprensa. Histórias como a mãe que deixou os filhos para ir ao forró ou namorar.
Não é o caso de Cinara Maria. Moradora do Conjunto Palmeiras, ela conta que não tem alternativa pela própria condição financeira. ?É com o coração na boca que deixo meus filhos sozinhos. Peço a uma vizinha para dá uma olhadinha de vez em quando, mais tenho medo que possa acontecer?, conta muito emocionada.
A sua história de vida é dramática. Abandona pela mãe, quando tinha seis anos, fui estuprada por um vizinho aos dez anos e aos 13 anos já era mãe. Hoje, aos 27 anos, tem quatro filhos. A mais velha, de 14 anos de idade, deu à luz a um menino no início do ano. ?Ela tomava conta dos irmãos menores, mas agora, tem a preocupação de seu filho?.
As duas, mãe e filha, esperam a reabertura da creche, no Palmeira. Ela é uma das relacionadas para fechar convênio com a Prefeitura. ?Aguardo com ansiedade. Assim, meus meninos ficarão lá?.
GARANTIAS
Responsabilidade da família, sociedade e poder público
A coordenadora do Disque Direitos Criança e Adolescente, da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), Roberta de Castro Cunha, aponta que, segundo o texto da Constituição, a responsabilidade sobre a garantia dos direitos da infância e da adolescência é solidária da família, da sociedade e do Estado.
No Ceará, revela, segundo diversos estudos sociais, as famílias com renda per capita mais baixa são aquelas que possuem crianças de 0 a 7 anos, em que mais de 50% dessas famílias vivem abaixo da linha da pobreza, com renda per capita até meio salário mínimo.
Para ela, a legislação penaliza àquelas pessoas que já são mais prejudicas pela ausência de políticas públicas que garantam os direitos da criança e jovem. Roberta alerta para, o que considera, o ?pior aspecto da lei sobre o abandono de incapaz?. De acordo com a coordenadora, criminalizando os pais, o máximo que poderá acontecer, se o aparato repressivo do Estado funcionar, é que eles sejam mais afastados de seus filhos, restando para as crianças apenas uma situação de abandono ainda maior.
A Funci, para intervir diante desta realidade, busca garantir a convivência familiar e comunitária digna para essas crianças e adolescentes, garantindo o Estado e a sociedade, solidariamente, espaços de educação, lazer e convivência.
Não podemos, avalia, criminalizar ainda mais as vítimas de um processo de exclusão social, por uma situação que requer uma intervenção ativa, compartilhada entre o Estado, promovendo políticas públicas de qualidade em atenção à infância e adolescência; a sociedade, acompanhando a execução dessas políticas e buscando criar espaços comunitários de integração e vivência; e a família, assumindo seu papel na proteção de suas crianças e adolescentes.
Lêda Gonçalves – Repórter