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O IPPS é incompatível com os critérios de segurança

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Opinião Pág. 04 16/08/2009
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promove o Mutirão Carcerário no Ceará até o próximo dia 25 de setembro. O objetivo é analisar todos os processos de réus presos em tramitação no Ceará. Nesta entrevista, o juiz federal Marcelo Lobão defende mais investimentos nos sistemas penitenciário e judicial
O Ceará tem mais de 14 mil presos, dos quais cerca de 45% são provisórios. Por que tantos nessa condição?
Esse índice não foge à realidade do Brasil. Praticamente em todos os estados é esse percentual: de 40% de presos provisórios, e 60% de condenados.
Mas por que há essa realidade no Brasil?
Eu atribuo principalmente ao formalismo do processo penal. Temos hoje um processo penal absolutamente incompatível com as nossa necessidades, principalmente de duração razoável do processo. Nosso Código do Processo de Penal é de 1941, então, passado tanto tempo, mesmo com todas as alterações legislativas feitas nesse período, há muitas distorções que acabam atrapalhando a tramitação do processo penal.
O que precisa mudar no Código do Processo Penal?
Que todas as questões sejam concentradas num recurso final de apelação. Precisamos também extinguir a 3ª e a 4ª instâncias no Brasil, hoje ocupadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Não estou dizendo que haja necessidade de extinção do STJ e do Supremo, mas de uma mudança no papel exercido por esses tribunais. O STJ deve ter a sua competência restrita à idéia da uniformização da jurisprudência no Brasil, e o STF precisa ser transformado exclusivamente em uma corte constitucional. Hoje, o STF e o STJ acabam tendo de decidir questões ordinárias, às vezes, menos importantes que o processo penal. Se não acontecer uma mudança profunda nisso, não vamos ter uma justiça célere e eficiente.
Que avaliação já se pode fazer dos presídios locais?
Vejo com muita preocupação o estado do IPPS. É um presídio com uma arquitetura que remonta aos anos 70, absolutamente incompatível com os critérios atuais de segurança e oferecimento de condições mínimas ao preso. Em relação ao preso provisório, posso dizer que houve um passo importante do Ceará, que foi a inauguração da nova casa de privação provisória de liberdade, em Itaitinga. Ali, a arquitetura é moderna. Há reparos a fazer, o próprio Estado já identificou falha no projeto arquitetônico, e o projeto estrutural será revisto nas próximas unidades.
Quais são essas falhas?
Um exemplo: em cada cela, há um ou dois beliches de concreto. O primeiro deles foi erguido a poucos centímetros do solo. Isso obriga a, todos os dias, os policias fazerem agachamento para verificar o que tem embaixo do beliche. Depois de centenas de agachamentos, o agente prisional não tem a mesma condição de fazer uma verificação apurada se há algum objeto que não poderia estar em poder do preso. Uma outra falha é que o presídio foi construído na perspectiva de que o preso passaria ali uns três meses, mas são poucos casos em que a sentença é proferida em três meses. Não há muito espaço para atividades ocupacionais, quer em relação a trabalho, quer a estudo.
Além da arquitetura, quais os outros problemas do IPPS?
Há um problema sério de ventilação em algumas unidades, assim como uma dificuldade muito grande no controle da quantidade de presos nas celas, por conta da própria estrutura (do presídio), e na condução dos presos por todos os pavilhões. Há também muitos lugares de fuga no IPPS.
Quais foram as principais queixas recebidas pelo senhor durante as conversas com os internos nos presídios?
Por incrível que pareça, a principal queixa não é em relação ao tratamento recebido pelo preso, nem à estrutura do presídio ou à alimentação. A principal queixa é sobre o andamento do processo. A maioria das reclamações não procede, mas o que precisamos fazer é exatamente um trabalho como esse do Mutirão, que, ao final, teremos uma resposta a essas reclamações. Ainda que o benefício não seja concedido, isso acalma os ânimos, acaba a sensação que há excesso no cumprimento da pena.
Os presídios são centros de recuperação ou ?fábrica de criminosos??
O ideal é que o presídio funcione como instrumento de ressocialização, mas seria muito romântico dizer que existe algum presídio com essa capacidade. Existem iniciativas importantes que podem e devem servir como modelo. Por exemplo, o trabalho com confecções, como existe hoje no presídio feminino aqui no Ceará, presas que participam, inclusive, do processo de preparação dos alimentos. Não posso dizer que, tendo isso no presídio, o detento passa a participar de um processo de ressocialização. A pena privativa de liberdade, por si só, obriga a reunião de presos perigosos com outros não tão perigosos. A realidade carcerária acaba coadjuvando para um aumento da periculosidade daqueles que entram no sistema.
Essa realidade deveria ser alterada?
Já houve tentativas em presídios maiores de fazer esse trabalho, mas há um grande problema: muitos presos se envolvem em divergências com outros presos e acabam tendo de ser deslocados de cela. Isso prejudica esse ideal de separação de presos por crime, periculosidade, idade… Fica muito difícil dentro dessa realidade vivida nos presídios.
Uma das maiores críticas dos juízes que participam do Mutirão foi a superlotação nas unidades de internação de menores em conflito com a lei. Como ressocializá-los em ambientes tão precários?
Em relação a adolescente, a situação é mais grave, porque ele está em desenvolvimento. Se não houver um trabalho efetivo por parte do Estado para que os centros de internação não sejam uma reprodução do que acontece nos presídios, o adolescente pode sair para o caminho da criminalidade. Há iniciativas muito boas que não se parecem com cadeias: não há grades, há escola, acompanhamento psicológico, possibilidade de qualificação profissional, o juiz faz visitas com freqüência… É importante que Estado, Município e União possam dar as mãos para construir um centro que atenda a essas necessidades.
O que fazer para resolver a superlotação nos presídios?
Investimento. Há um déficit no Brasil de 120 mil vagas nos presídios. Isso representa bilhões em investimentos. No Ceará, há em torno de 50, 60 mil mandados de prisão em aberto. Claro que esse número precisa ser depurado, há muitos mandados de prisão que são referentes a crimes prescritos, mas a realidade é grave. Precisamos aumentar o investimento no sistema e o número de vagas nos presídios.
A saída é sempre ficar construindo presídios?
Não. O CNJ tem defendido as penas que não representam privação de liberdade, as chamadas penas alternativas. Os juízes precisam refletir mais sobre a possibilidade de aplicar penas alternativas. Claro que estamos tratando dos presos que têm menor periculosidade. Geralmente, o índice de reincidência é menor do que aqueles que cumprem prisão.
Muitas vezes, o ex-presidiário tem dificuldade de conseguir emprego e se reintegrar à sociedade. Como evitar que ele volte à criminalidade?
A primeira coisa é o próprio Judiciário dar o exemplo. O STF, recentemente, fez um convênio com a União e a administração penitenciária do Distrito Federal (DF) para absorver mão-de-obra de egressos do sistema prisional e de presos que estão cumprindo pena em regime aberto e semi-aberto. Muitos deles trabalham na sede do STF, em Brasília, fazendo atividades, as mais diversas possíveis. Em breve, devemos levar essa proposta ao presidente do Tribunal (de Justiça do Ceará) para que seja copiada por outros órgãos e até pela iniciativa privada de Fortaleza e da Região Metropolitana, principalmente.
Um preso ganhou liberdade no Mutirão Carcerário e cometeu um assassinato em Teresina. O secretário de Segurança do Piauí, Roberto Rios, afirmou que a violência aumentou depois da soltura de cerca de 300 presos pelo Mutirão. Como o CNJ recebe essas críticas?
Com muita consternação. O Mutirão Carcerário não faz nada além de conceder benefício a quem tem direito. Esse tipo de acontecimento é inevitável. Se um preso é solto durante o Mutirão, ou antes, mas já tem essa predisposição ao crime, não há muito o que fazer além de investir em segurança pública. Vamos culpar o juiz que soltou alguém que tinha direito ao benefício pelo fato cometido semanas depois? É uma fatalidade. É impossível prever o que passa na cabeça de um preso.
De que forma o Mutirão Carcerário contribui para a segurança pública?
Ao falar de soltura de presos, estamos também colaborando com a segurança pública, porque se evita tensão nos presídios. A principal queixa nos presídios é o excesso (de tempo) na prisão. Quando não fazem motins ali dentro, saem do sistema revoltados. Há um risco grande de que haja uma certa vingança contra a sociedade. Essa soltura não aumenta a criminalidade, diminui. E, em segundo lugar, estamos falando de amparar o familiar do preso, para que essa pessoa também colabore com a reinserção social. Quando falamos da absorção de mão-de-obra de presidiários, estamos colaborando com a reinserção social e evitando a reincidência. É um projeto completo, não sei porque ainda há críticas.
Há iniciativas do Ceará que poderão servir de modelo?
No Ceará, iniciamos um projeto pioneiro que chamamos de ?projeto previdenciário?. É uma ampliação de acesso das famílias dos presos ao sistema previdenciário e ao sistema assistencial. Começamos com a informação, que é o principal meio de exercer os direitos. Em seguida, vamos acompanhar os pedidos de benefícios. Se não for possível conceder o benefício previdenciário, como o auxilio-reclusão, que é específico para familiares de presos, a nossa idéia é que a família possa também ter acesso a outros benefícios e possa suprir a falta da renda que é ocasionada pela prisão do provedor do lar. Em muitos casos, o crime é a fonte de renda da família, então precisamos substituir essa renda ilícita por uma renda lícita, para que as pessoas possam confiar que vale a pena cumprir a lei. Esse projeto vai ser levado para outros estados dependendo do êxito desse trabalho.
Depois do Mutirão, como evitar que esses processos voltem a se acumular?
O Mutirão Carcerário é um projeto permanente, não termina agora. Possivelmente, deveremos voltar daqui a alguns anos, porque ele nos ajuda a fazer um diagnóstico dos sistemas carcerário, judicial e penal, e auxilia o CNJ a propor políticas públicas e mudanças na legislação. Quanto ao acúmulo de processos e o atraso na concessão de benefícios, se é que existem, ainda é cedo para fazer um diagnóstico. Mas evitar problemas como nós enfrentamos em outros estados, depende necessariamente de investimentos na virtualização do processo, ampliação do número de juízes e investimento nas defensorias públicas. Se não houver investimento, esse trabalho, que seria apenas para diagnóstico, irá se tornar necessário permanentemente.