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Estigmas cristalizados

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21/11/2010 Vida e Arte
APESAR de possuir leis consideradas avançadas, o Brasil ainda esbarra em costumes herdados da Idade Média, segundo a pesquisadora Eneida Beraldi Ribeiro, do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da USP
A imprensa tem noticiado, diariamente, casos de agressões, que à primeira vista, nos parecem inexplicáveis, e que crescem em progressão assustadora. Assassinatos de moradores de rua e homossexuais, linchamentos, violência contra as mulheres e crimes passionais tomam conta dos jornais, revistas e telejornais, explorados, muitas vezes, de maneira sensacionalista.
As questões que se impõem são das mais variadas. Como entender que esse tipo de atitude e comportamento continue a se propagar e por que as políticas de conscientização não têm tido resultados efetivos? Como compreender, na atualidade, que a vida humana possa valer tão pouco?
Onde podemos encontrar assegurados os direitos defendidos pelos iluministas do século XVIII e nos quais todo o Ocidente se orientou depois do processo revolucionário francês? No entanto, bem o sabemos, o movimento que derrubou o absolutismo não foi exatamente igualitário, nem garantiu a liberdade a todos e, tão pouco foi, durante os anos que se seguiram à tomada do poder, fraterno.
A busca pela consciência dos direitos humanos tem sido difundida em grande parte do mundo, principalmente depois de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Mas, o que temos presenciado não acompanha o discurso de ativistas, juristas, professores e meios de comunicação engajados. No Brasil, especificamente, a intolerância e o preconceito têm alvos específicos e, cada um deles, um longo histórico de perseguição cujos estigmas permanecem no inconsciente coletivo, manifestando-se não só em atos de violência, mas também em lembranças, que assim, cristalizam-se.
Nos casos das mulheres e dos homossexuais, para discorrer apenas sobre dois elementos, a história nos dá vastos campos de análises e pesquisas. Vistas como inferiores por algumas interpretações religiosas, as mulheres, desde a antiguidade, deveriam manter-se subjugadas à vontade do homem. Esse cenário se modifica gradativamente pelas conquistas, a partir da década de 60, no século XX, quando a mulher assumiu-se como um ser autônomo, dona de seu corpo e de sua sexualidade. É evidente que essas conquistas não abarcaram o universo das mulheres, notadamente as de poder aquisitivo menor, de baixa escolaridade (não excluindo as mais privilegiadas) e as que vivem em regiões nas quais seus corpos ainda são moeda de troca, seus anseios desprezados, sua sexualidade reprimida e sua prole, às vezes indesejada, sua única responsabilidade.
O Brasil é um país paradoxal. Sua legislação se antecipou a de muitas nações quando, em 1934, deu o direito de voto às mulheres. No século passado, frente à violência que sofriam por parte de seus pais, maridos e irmãos, foram criadas delegacias especializadas na defesa e proteção das mulheres. O que presenciamos, no entanto, é uma sucessão de crimes ditos passionais e a ironia de algozes que se reputam inocentes perante a justiça, enquanto a memória de suas vítimas é maculada e, tanto o ciúme doentio, quanto as paixões desmedidas desculpam atos de crueldade extrema. As denúncias e os pedidos por proteção feitos por algumas dessas vítimas não surtiram uma ação responsável que lhes garantissem a vida, e famílias perplexas não encontram o prometido apoio das instituições públicas.
Relembrando a ideia medieval de diabolização das mulheres, o juiz Edílson Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), negou a própria constitucionalidade à Lei Maria da Penha. O jornal Folha de São Paulo, em 21 de outubro de 2007, publicou as opiniões do juiz sobre a Lei que ele denominou de ?monstrengo tinhoso? e um ?conjunto de regras diabólicas?. Ele classificou a mulher como ?causadora da desgraça humana desde o Éden?. O mundo, em sua visão é ?masculino?. ?A ideia que temos de Deus é masculina. Jesus foi homem!?. O homem, para o magistrado, ainda é ?ingênuo e frágil emocionalmente? e a família, por sua vez, estaria ?em perigo e esfacelada? uma vez que o homem ?subjugado? não teria mais como impor suas regras.
O juiz ainda criticou a mulher moderna, que se diz ?independente?. Ele acredita que aquela que encontrar ?o homem de sua vida, que a satisfaça como ser sensual, tenderá a abrir a mão de tudo, no sentido dessa igualdade, que hipócrita e demagogicamente se está a lhe conferir?. Ao homem restaria não se envolver nas ?armadilhas dessa lei absurda e se manter tolo?. Como adequar a legislação às mentalidades retrógradas, mesmo que letradas? De que maneira garantir a lei se, no cotidiano, acabam por vencer os antigos estereótipos?
Na questão relativa aos homossexuais, a problemática ainda é mais delicada, uma vez que ainda tateiam projetos de lei que resguardem seus direitos (em São Paulo a Lei Estadual 10 948 do ano de 2001, prevê multas para os casos comprovados de discriminação). Na visão do especialista Luiz Mott, há uma ?homofobia internalizada?, desde a Idade Média, recrudescida pela Igreja e pela Inquisição. A resistência frente aos preconceitos tem ceifado muitas vidas. Não há Parada Gay que consiga, pelo menos até o momento, superar antigas barreiras. Uma universidade presbiteriana de São Paulo, por exemplo, manteve até o dia 16 de novembro deste ano, em seu site, uma postura contrária à criminalização da homofobia. Numa estranha inversão de valores, creditava à aprovação da lei o tolhimento da liberdade de expressão, pois impediria que as igrejas, (?conclamando a todos ao arrependimento e à fé em Jesus Cristo?), mantivessem seu discurso contrário à homossexualidade e a pregação sobre ?conduta e comportamento ético?, ampliando, em contrapartida, os direitos dos homossexuais.
A solução não é fácil nem será rápida. A escola sozinha não consegue solucionar nem os casos de violência interna e bullyings. A sociedade carece de valores mais humanos e éticos, que se universalizem, mas não a ética defendida por aqueles religiosos que consideram seus pontos de vista superiores. Urge uma conscientização do que significam os valores humanos, que sejam, na realidade, universais e não apenas temporais ou restritos a uma pequena parcela da população, conciliando, definitivamente, a lei à sua prática.
ENEIDA BERALDI RIBEIRO é pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI), da Universidade de São Paulo (USP).