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122 anos de atraso

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12.10.2009
RICARDO MENDONÇA
PROTESTO
Manifestantes na Câmara, em Brasília, contra a proposta que beneficia os tabeliães não concursadosNo dia 14 de julho de 1887, quando o Brasil ainda era um Império, a princesa Isabel assinou o seguinte decreto:
Art. 1º Serão providos nas Provincias pelos respectivos Presidentes, mediante concurso, os officios:
§ 1º De Tabelliães do publico, judicial e notas;
§ 2º De officiaes do registro de hypothecas nos logares em que por decreto for creada a serventia privativa.
O texto acima é a primeira norma estabelecendo a necessidade de concurso para cartórios no país. O Império caiu, quase uma dezena de Constituições republicanas foram feitas, mas ainda faltam concursos no setor. Apesar de a obrigatoriedade do concurso constar na Constituição de 1988, mais de 5 mil titulares de cartórios em atividade assumiram a função por indicação ou hereditariedade. Dos mais de 12 mil cartórios do país, apenas 2.500 são administrados por concursados. Os cerca de 4.500 restantes são estatais, e o responsável é servidor público.
Os tabeliães não concursados permanecem porque muitos Tribunais de Justiça nunca providenciaram a troca pelos concursados. Há quatro meses, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) interveio e publicou uma resolução declarando a “vacância” dos cartórios ocupados por quem não fez concurso. A resolução obriga os Tribunais a providenciar as substituições em até seis meses. Foi a senha para uma forte reação no Congresso Nacional. No mesmo instante, ganhou força na Câmara uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante a efetivação de todos os dirigentes não concursados que assumiram entre 1988 e 1994.
Batizada de trem da alegria, a PEC é assinada pelo deputado João Campos (PSDB-GO). Ele justifica assim o projeto: “Não é justo deixar essas pessoas experientes, que estão há anos na qualidade de responsáveis pelas serventias (cartórios), ao desamparo”. O projeto ganhou apoio de deputados de diversos Estados, e seus defensores se espalham pelo espectro partidário.
A contrarreação foi liderada pela cúpula do Judiciário. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, classificou a proposta como “um arranjo, um arremendo, uma gambiarra”. O corregedor do CNJ, Gilson Dipp, fez um alerta ao lembrar que os ex-titulares de cartórios que deixaram a função para fazer concurso poderiam pedir indenizações. O advogado Pablo Cerdeira, professor da Fundação Getúlio Vargas e ex-assessor do CNJ, calculou que a aprovação da PEC representaria para os Estados indenizações que, somadas, poderiam chegar a R$ 2,2 bilhões.
Por causa da repercussão negativa, a votação da PEC foi adiada. Enquanto não existir concurso na maior parte do país, porém, a norma criada dois séculos atrás pela princesa Isabel continuará parecendo moderna demais para o Brasil.